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O quanto você realmente quer? Uma conversa do cérebro com o cérebro

Atualizado: 20 de jul. de 2021


“Uns com tanto, outros com tão pouco”


Você já ouviu a história da mãe que levantou um carro com os próprios braços para tirar a filha que estava presa debaixo dele? Ou do lutador que quebrou a perna no meio da luta e não percebeu até que ela torcesse como uma borracha no chão? Do soldado que carregou o amigo moribundo por 30 quilômetros? Talvez não tenha escutado nenhuma dessas histórias especificamente. Mas certamente já ouviu, ou até mesmo presenciou alguém realizando um feito inimaginável em situações extremas, esportes de alto rendimento, acidentes, ou guerras.


Se quisermos comparar nossa capacidade de lidar com stress, com qualquer história dessas que rende um filme “baseado em fatos reais”, é impossível não se sentir fraco e impotente diante da disparidade gritante de capacidade. Quando vemos pessoas, como nós, de carne e osso, realizando feitos que parecem impossíveis para um humano, é difícil não se perguntar: como isso acontece? será que essas pessoas têm alguma qualidade especial que os humanos comuns não têm?


O senso comum (e os filmes) costumam assumir que sim. Que são “heróis”. Pessoas dotadas de uma capacidade única. E talvez existam de fato pessoas mais propensas a realizar feitos de esforço extraordinários, caso as condições se apresentem.


Mas o que pretendo trazer neste texto é uma compreensão sobre os mecanismos a partir dos quais, todo e qualquer ser humano pode aumentar sua capacidade de realizar e suportar esforço. Esses mecanismos não são privilégio de humanos super dotados. Eles estão presentes no corpo de qualquer pessoa comum e são simplesmente a forma como evoluímos para funcionar e sobreviver.


Nesse texto pretendo virar de cabeça pra baixo boa parte do que pensamos a respeito das sensações de fadiga e de distração. Espero com isso que você termine essa leitura com uma compreensão mais aguçada de como nosso corpo funciona e com ferramentas para aprender e administrar melhor seu stress.


O quanto você realmente quer?


Todo organismo vivo tem que respeitar a lei da conservação de energia. O nosso sistema nervoso está constantemente administrando seu “orçamento metabólico”, para tomar a ação que mais lhe trará benefício, pelo menor custo energético possível. Em um ambiente de recursos limitados, nosso cérebro se desenvolveu para ser uma máquina de fazer previsões e julgamentos a respeito de onde é melhor alocar seus recursos metabólicos escassos. A neurocientista Lisa Barret Feldman descreve esse processo como se o nosso sistema nervoso tivesse as senhas de uma conta bancária de reservas energéticas. E que, como um investidor informado, ele estaria constantemente tentando tomar as melhores decisões a respeito de como gastar essa energia.


Na história evolutiva da natureza, os organismos que não desenvolveram estratégias eficientes de alocação de recursos metabólicos ficaram pelo caminho e hoje não existem mais. E isso tem implicações importantes sobre a forma como interpretamos sinais que recebemos do nosso cérebro.


Neurociência, Fadiga e Distração


Para a neurociência, fadiga e distração são, de certa forma, faces da mesma moeda. Ambos são sinais enviados para o nosso corpo, pelo sistema nervoso, de que o benefício esperado por aquela dada ação não compensa o custo metabólico para realizá-la. No constante equilíbrio das “contas metabólicas”, nosso sistema nervoso envia sinais de fadiga e/ou distração quando considera que não vale a pena seguir gastando recursos com uma determinada atividade.


Basicamente o que ele quer é nos motivar a desistir daquela ação, e focar nossa atenção em outro lugar.


Fadiga


Sensações (dor, fadiga, fome, sono…) são a forma como nosso sistema límbico (parte do sistema nervoso responsável, entre outras coisas, por emitir sensações) comunica para o resto do corpo suas opiniões, nos motivando assim a agir (ou a não agir). A sensação de cansaço é, portanto, um produto do seu sistema nervoso e não apenas um fenômeno muscular, tecidual.


Quando você está se esforçando e sente cansaço, isso não quer dizer que você não tem mais energia. É evidente que cansaço muscular entra em jogo na equação que nosso sistema nervoso tenta resolver para decidir o quão cansados vamos nos sentir. Mas mesmo se suas reservas imediatas de glicogênio estiverem em baixa, o corpo tem diversos mecanismos de produzir mais energia caso precise.


Nesse caso a mensagem que o seu sistema límbico está enviando é a seguinte: o gasto energético para realizar essa ação está grande demais em relação ao retorno que ele espera dela. Da forma mais direta possível, seu sistema nervoso considera que não está valendo a pena continuar gastando essa energia. Essa opinião chega na forma da sensação “fadiga”, e nos motiva a descansar. Da mesma forma que a dor (nesse texto falo em mais detalhes sobre dor), o cansaço é um sinal construído pelo nosso cérebro a partir de informações que ele retira do ambiente e do nosso corpo como um todo.


Se você parar, você concorda que o seu sistema nervoso não deve abrir sua carteira de reservas para seguir realizando aquela ação. Você sinaliza que seu sistema límbico está certo. Que preservar energia é mais importante do que realizar aquela ação. Mas, se você segue, apesar da sensação, você está negando uma opinião de parte do seu organismo e mostrando para você mesmo que realizar aquela ação é mais importante do que preservar energia.


Quando eu digo “você” estou falando do seu córtex pré-frontal. Na realidade, tanto seu sistema límbico (parte do sistema nervoso “responsável pelas suas sensações”), quanto seu córtex pré-frontal (parte do seu sistema nervoso “responsável pelas suas deliberações”), são “você”. São apenas duas partes distintas do seu sistema nervoso, decidindo que ação tomar, ou não tomar.


Distração

A distração é uma outra forma do nosso cérebro nos informar que estamos desperdiçando recursos metabólicos e empurrar nossa atenção para outro lugar. A vontade de “mudar de assunto”, de alterar o objeto do nosso foco, de pensar em outra coisa, de buscar algo novo, acontece quando nos deparamos com uma situação demandante, estressante, que não queremos (ou não podemos) enfrentar.

Como a fadiga, a distração é um ótimo mecanismo para nos manter vivos e economizar energia. Porém, assim como quem se cansa fácil, se distrair fácil é um sinal de que temos pouca capacidade em lidar com stress. Se manter focado, quando nosso corpo quer nos tirar daquele tema, é uma ótima forma de praticar esse autocontrole e a capacidade de lidar com stress. Sobretudo nos tempos de atenção fragmentada em que vivemos com as mídias sociais.


Quando ficamos entediados com facilidade, isso diz menos das coisas que nos entediam, e mais sobre nós mesmos. O tédio é uma informação sobre a nossa incapacidade de dar atenção ao mundo que nos cerca e de extrair algo de valor dele. A necessidade constante por novidades pode ser uma forma de não ter que lidar com o esforço de se manter em algo demandante. É por isso que as mídias sociais são tão viciantes. Elas fragmentam nossa atenção, trazendo sempre uma pequena dose de dopamina para nos manter presos, e antes mesmo de precisarmos fazer algum esforço de compreensão, o assunto já trocou. Com um passar de dedos temos uma nova foto, um novo texto, uma nova notícia. É como um sedativo.


O problema é que, manter o foco em um tema por um tempo maior do que seu conforto permite, é condição de qualquer aprendizado. Esse stress, esse desconforto de tentar focar de verdade em alguma coisa, que o neurocientista Andrew Huberman chama de fricção límbica, é o próprio sinal de que o aprendizado está de fato ocorrendo.


De onde vem os super poderes?


Se você segue realizando o esforço apesar dos sinais do seu sistema límbico, você está enviando uma mensagem de que ele está errado. E de que sim, aquela atividade é importante o suficiente para justificar o esforço. E, quanto mais você tenta ir contra sua sensação, mais ela vai se intensificar. Quanto mais você continuar gastando, mais enfaticamente você vai ser perguntado se aquilo é realmente importante.


Até um certo ponto. Pois a partir de um determinado limiar, a “magia” acontece. Pois se algo é REALMENTE importante, a última coisa que seu cérebro deve fazer é te atrapalhar. Se você está fugindo de um leão, não faz sentido seu organismo te atrapalhar com sensações de dor ou cansaço. Pode ter certeza que todas as suas turbinas vão estar ligadas para correr.


Nesse momento, o que o nosso organismo faz é escancarar as portas das suas reservas metabólicas enquanto a adrenalina e o cortisol fazem os super poderes acontecerem. Menos dor, maior capacidade física, mais foco e motivação absoluta.


É isso que permite que pessoas comuns realizem os feitos extraordinários que descrevi no início do texto. Em um cenário de guerra, ou numa competição esportiva de alto nível, por exemplo, o nível de adrenalina no corpo é tão elevado, que atingimos capacidades físicas impensáveis em condições normais e chegamos ao ponto de não sentir nenhum tipo de dor, mesmo tendo sofrido lesões sérias.


É claro que essa resposta ao stress não é um mero interruptor “liga/desliga”. Níveis maiores ou menores de stress geram efeitos maiores ou menores de analgesia e disposição física. Mas de qualquer forma, altas concentrações dos hormônios do stress são muito demandantes para o nosso corpo. Ter essa resposta ligada por muito tempo no organismo pode nos trazer prejuízos sérios. Por isso ela só é disparada em situações importantes. E os super poderes só são liberados em situações extremas. (Para uma descrição mais detalhada desse processo, ver o meu texto anterior sobre a resposta do nosso corpo ao stress).


E qual a conclusão prática disso tudo?


Mas onde quero chegar com tudo isso? Vimos que os primeiros sinais de fadiga que sentimos ao realizar uma atividade, são apenas uma pergunta sutil do nosso sistema nervoso no sentido de saber se aquilo realmente é importante para nós. Por um lado, entender esses sinais do corpo são uma boa forma de identificar de fato o que é importante para nós. Se nos cansamos ou nos distraímos facilmente com algo, é porque talvez aquilo não seja de fato tão importante para nós. Ou talvez seja porque não nos consideramos capazes de lidar com esse desafio.


Se algo realmente não é importante para nós, está tudo bem. Mas se é algo que precisamos ou queremos dar atenção, é importante saber que a desistência ao primeiro sinal de fadiga não apenas demonstra, mas fortalece nossa incapacidade de resistir e lidar com essa demanda. Nosso sistema nervoso está a todo momento coletando informações da realidade e aprendendo com elas, fortalecendo o que é útil e descartando o que não é útil. Quanto mais realizamos uma ação, no caso, parar ao primeiro sinal de fadiga, mais fácil vai ser repetir essa ação no futuro.


Portanto, cultivar a capacidade de negar sensações e continuar trabalhando, mesmo diante do desconforto, é uma ferramenta poderosa para treinar nossa capacidade de lidar com situações estressantes e de transformar nosso cérebro. Como qualquer músculo, nossa força de vontade também é treinável. E o treino consiste na exposição gradual a situações de stress.

Um adendo importante


Da mesma forma que não devemos praticar atividades físicas intensas quando estamos machucados, suportar o desconforto de focar/trabalhar não é algo que devemos buscar no momento em que já estamos altamente estressados. Dosar a nossa exposição é fundamental. Da mesma forma que se queremos deixar um músculo mais forte precisamos romper suas fibras, estressá-lo, se queremos nos tornar mais resistentes ao stress, precisamos experienciar situações de stress. Mas se passamos do ponto, podemos nos machucar. Nesse caso, e em quase tudo que se refere a organismos vivos, a diferença entre a cura e o veneno está na dosagem.


Conhecer a si mesmo, saber identificar os sinais do próprio corpo e saber quando está estressado é chave para administrar bem o stress.


Conclusão. Aprender melhor e administrar melhor o stress


Nós humanos temos o córtex pré-frontal mais desenvolvido que qualquer outro animal conhecido. O córtex pré-frontal é a parte do nosso cérebro responsável pela deliberação. É a parte que nos permite agir a despeito do nosso sistema límbico (sensações). A decisão deliberada de seguir se esforçando ou de manter o seu foco em algo, apesar da sensação de cansaço ou vontade de se distrair, é a chave para o aprendizado. Na realidade essa é a forma como nós aprendemos e o motivo pelo qual humanos aprendem mais e melhor do que qualquer outro animal.


Pois quando o seu sistema límbico envia sinais, através de sensações de fadiga e/ou distração, ele está enviando uma opinião para você. Está dizendo: eu acho que o custo metabólico dessa ação é maior do que o benefício que vamos extrair dela. Qualquer mamífero é dotado desse mesmo mecanismo. Porém, nós humanos temos maior capacidade de agir de forma contrária a essa sensação, de deliberar por manter aquele esforço, e enviar uma mensagem de uma parte do cérebro para a outra dizendo: você está errado. Esse esforço é importante.


O resultado desse processo é que seu sistema nervoso muda de opinião e aprende com isso. Ele se transforma. É o que os neurocientistas chamam de neuroplasticidade. A capacidade do nosso sistema nervoso de se alterar diante de informações do ambiente e do próprio organismo. Por um lado seu sistema límbico aprende que aquela ação é importante, e, portanto, passará a enviar menos sinais de fadiga quando o contexto se repetir. Por outro, seu sistema deliberativo se fortalece após uma situação onde, diante de opiniões divergentes, ele assumiu o protagonismo.


Neurocientistas, de certa forma, comprovam que havia verdade na filosofia estóica. A capacidade de foco e esforço resistidos, a despeito do que nossas sensações nos digam, é condição do aprendizado e desenvolvimento humano. E se o que nos distingue dos outros animais é o desenvolvimento do nosso córtex pré-frontal e, consequentemente nossa capacidade deliberativa, em alguma medida o esforço e foco resistidos são o que nos fizeram chegar onde estamos e parte do que significa sermos humanos.


Espero ter te ajudado a compreender um pouco melhor como nós funcionamos e como esse conhecimento pode nos equipar com ferramentas para nos guiarmos de forma mais deliberada pela vida.


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