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O seu corpo não confia em quem você acha que é

Atualizado: 17 de set. de 2021

“Veja bem. Seu corpo vai ser sempre uma expressão mais honesta de quem você é do que essa coisa que nós costumamos chamar de “eu”. Seu corpo não confia plenamente nesse “eu” e vai seguir sendo incompreendido e agindo fora do controle do seu cérebro e sua atividade intelectual. Como seu passado indica, ele não pode confiar em você” - Ido Portal.


Começo o texto com essa frase poderosíssima do professor Ido Portal. Há muito ouro nessa afirmação. Mas do que Ido está falando? Que corpo é esse que não confia em você? Quem é você que não controla seu corpo? Comecemos do princípio. Conhecimento de base.


  • 99.9% das ações que realizamos são inconscientes. Não passam pelo crivo da consciência.

  • A consciência é uma propriedade nova na história da vida na terra. E 99.9% dos organismos vivos não são dotados de consciência.


(neurocientistas especulam que outros animais além do ser humano - mamíferos, alguns pássaros, polvos… - dispõem de complexidade neural suficiente para a consciência emergir. Mas isso não muda em nada a afirmação acima.)

Com esses dados em mente, percebemos que a consciência é uma função muito recente da natureza e ainda em fase de testes - e dependendo de como olhamos para os nossos efeitos neste planeta, podemos até dizer que é um teste que pode estar dando errado e que eventualmente venha a ser eliminado como mais um teste evolutivo que não vingou.


Nossa consciência, geradora do que chamamos de razão, da qual somos tão orgulhosos e que, em grande medida, é o motivo pelo qual somos quem somos e estamos onde estamos, quando visto de uma perspectiva evolutiva mais ampla, mostra sua real dimensão. Uma propriedade emergente jovem, presente em pouquíssimos seres vivos, e mesmo neles, sem grandes poderes de controle. Um detalhe na história da vida na terra.


Sim. Os iluministas estavam errados. Podemos considerar que existimos porque pensamos, como nos ensinou Descartes. É necessário pensar para poder conceber a própria existência. Mas o erro dos iluministas estava em superestimar o papel da consciência e da racionalidade na nossa vida. O que chamamos de racionalidade é um produto da consciência. Se a consciência não dá conta de responder nem por 1% das nossas ações…


Voltando ao Ido. “Seu corpo vai ser sempre uma expressão mais honesta de quem você é do que essa coisa que nós costumamos chamar de “eu””.


99.9% das suas ações são uma demonstração muito mais fiel de quem você é do que aquele 0.1% que passa pela sua consciência e que, após feita a devida racionalização, você chama de “eu”. Nietzsche já dizia, não sei se com essas palavras, mas dizia: a mente chega para explicar o que o corpo já decidiu.


Consideremos a mecânica do comportamento consciente. Seus sentidos recebem sinais do mundo. Eles enviam esses sinais para o topo do seu cérebro. Seu córtex pré-frontal recebe e analisa essa informação, cruzando com toda a experiência que ele tem armazenado, com a forma como ele interpreta o contexto dessa informação e com o que considera serem os recursos disponíveis para agir naquele contexto. Chegando a uma conclusão, ela emite sua deliberação final e envia o sinal para o organismo agir. Agora sim podemos agir.


O tempo que esse processo demora é um tempo que organismos vivos em um ambiente selvagem não podem se dar ao luxo de ter. Mesmo a deliberação mais rápida possível leva mais de 1 segundo para acontecer. E como todos os organismos vivos precisam sobreviver em um mundo muitas vezes hostil, somos preparados para fazer quase tudo de forma pré-consciente. O “homo deliberativus” foi comido por um leão e não passou seus genes adiante.


E não esqueçamos. O motivo pelo qual temos um sistema nervoso é para produzir movimento do nosso corpo. Isso não é Ido Portal falando. É Daniel Wolpert e boa parte dos seus pares neurocientistas. Sim. O motivo pelo qual temos um cérebro, é para produzir movimentos. E um cérebro complexo serve para processar informações de maneira complexa para produzir movimentos complexos.


Percebam que aqui não estou tratando apenas do conceito de "inconsciente" freudiano. Freud não podia entender neurociência com a amplitude que entendemos hoje e nem tampouco biologia evolutiva, que apenas engatinhava naquela época. Não falo apenas do mundo dos símbolos reprimidos. Falo de uma existência muito anterior a qualquer invenção simbólica do ser humano. Estou me referindo a nossa existência de maneira mais bruta e primitiva. Física, química. A começar pelos sinais nervosos que enviam sinais de contração para os nossos músculos. Ou seja. De cada movimento que se realiza no nosso corpo para nos mantermos vivos.


Começamos respirando. Respiração, a nossa primeira forma de nutrição. Em seguida, veio a segunda forma de alimentação. Não apenas oxigênio, mas da predação. Adquirir energia se alimentando de outras vidas. E com isso surge o movimento. Um sistema nervoso que, ligado a estruturas motoras, possibilitou que pudéssemos nos mover para buscar alimento ou fugir de nos tornar alimento de outros seres moventes. Essa história é 99% da história da nossa vida na terra. Consciência e símbolos são apenas o 1% mais recente. Mais chamativos. Mais barulhentos. E sim, muito importantes. Mas que sem essa base nem podem existir.


Porque lembremos. Sobrevivência é a prioridade. Sempre foi. Conhecimento, razão, vêm depois. O corpo não pode vacilar. O corpo precisa agir. Só a consciência vacila. E por isso ela não tem o controle. Taleb redefine de maneira magistral o conceito de racionalidade. Racionalidade não é aquilo que faz sentido entre seres conscientes. Racionalidade é aquilo que nos ajuda a sobreviver. Se damos sentido a isso ou não, pouco importa. A racionalidade da natureza é a sobrevivência e a reprodução.


Por isso, o corpo não mente. O corpo só é. Nós mentimos. Nossa "razão" mente. Para nós mesmos principalmente. E seguiremos mentindo se precisarmos para sobreviver. Se conhecer a realidade de alguma forma atrapalha nossas chances de sobreviver, nossa consciência nos contará mentiras para seguirmos vivendo.


Aquilo que chamamos de “eu”, a imagem que temos de nós mesmos, está longe de ser quem somos. O que chamamos de “eu” é apenas uma imagem confortável que precisamos manter de nós mesmos para sobreviver.


Por isso o seu corpo não confia em “você”. Na sua consciência e na sua razão. Ela pode produzir coisas extraordinárias se bem treinada. Mas ela é lenta. E ela mente. A natureza é sábia. Não daria as rédeas de um organismo nas mãos de uma função em fase de testes. E por isso o corpo age fora do controle da sua atividade intelectual. Apesar de você. Sua atividade intelectual é um adendo do seu todo. Quem você é não pode ser dito. Nem pra você mesmo. Apenas é.


Se quisermos entender um pouco melhor quem somos, acreditemos um pouco menos no que passa na consciência e um pouco mais no que nosso corpo de fato faz.


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