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Movimento é para mim?

No Vertebra recebemos essa pergunta constantemente. “As aulas de movimento são para mim? Pois tenho um problema na coluna, joelho, ombro, pé…” não importa o lugar do problema. Nos impressiona a quantidade de pessoas que se identificam como alguém com um problema.


Para responder essa pergunta, contarei um pouco da minha experiência com esse tipo de problema. Em outubro de 2020, fui fazer a primeira ressonância magnética de lombar e sacro da minha vida. Desde que me entendo por gente lido com dores lombares leves, nada que me impeça de realizar minhas atividades, mas recentemente havia passado por uma crise muito forte. Por isso fiz o exame. Segue o laudo do exame:


  • Nódulos de Schmorl nas L4 e L1-L2 (uma hérnia para dentro do corpo vertebral)

  • Protrusão discal nas L1-L2, L3-L4 (início de hérnia)

  • Protrusão discal com compressão da raiz neural na L4-L5 (início de hérnia)

  • Extrusão discal na L5-S1 contactando a raiz neural e comprimindo o sacro dural (hérnia)

  • Desidratação de todos os discos lombares e espessamento dos ligamentos amarelos em L4 e L5


Resumindo. Tenho 2 hérnias de fato e 2 “quase hérnias”. Não existe uma vértebra lombar minha que não tenha “um problema”, segundo o exame de imagem.


Além disso, lidei com uma lesão no menisco que, por uma década, não me permitia botar muita carga no joelho em flexão. Quando eu tentava o joelho fazia “ploc”, (era a parte rompida do menisco passando para o outro lado do osso), e eu tinha que sentar e esticar completamente a perna para “ploc”, ele voltar para o lugar. Finalmente um dia ele rompeu de vez e bloqueou minha articulação. Tive que operar e remover metade do meu menisco esquerdo.


Como consegui tantos “problemas”? Possivelmente uma mistura das minhas predisposições genéticas, com excesso de cadeiras na juventude (fui profissional de jogo de computador, chegava a passar mais de 8 horas sentado em um dia treinando), excesso de carga e estripulias (saia da cadeira apenas para dar saltos mortais e pular girando em uma perna só na capoeira nessa época), alimentação e sono subótimos certamente também entraram nessa jogada.


Treinava bastante levantamento de peso quando jovem e cheguei a carregar 2x meu peso corporal em agachamentos e levantamento terra. Isso tudo claramente sem uma mobilidade ideal para realizar esses movimentos com tanta carga. Por outro lado, é uma vantagem o fato de que sempre fui muito ativo e pratiquei todo tipo de esportes e atividades físicas toda a minha vida.


Essas são as explicações que me vem à mente tentando recordar meu passado. Mas possivelmente estou errado. Isso importa pouco. Dor nas costas é um dos fenômenos menos compreendidos por estudiosos do corpo. 90% dos casos são definidos como “dor inespecífica”, que é apenas uma forma bonita de dizer “não sabemos do que se trata”.

Praticamente não existe relação entre o que é diagnosticado pela análise de exames de imagem e a realidade da sensação de dores em pacientes. Diversas pessoas com hérnias e diversos tipos de “achados” em exames de imagem não sentem nenhum tipo de dor ou disfunção. Qualquer pessoa com mais de 40 anos terá uma “condição” identificada por um exame de imagem da coluna. Mas nem todas as pessoas com mais de 40 anos sofrem de dor nas costas.


Voltando à minha história. Hoje, com 35 anos, faço muito mais do que fazia aos 20, 25 ou 30 anos. Apesar dessas hérnias, meu corpo é extremamente disponível e funcional. Menos de 2 meses depois de tirar metade do meu menisco estava dando saltos mortais novamente. Realizo coisas que pessoas sem nenhuma hérnia nem sonhariam em fazer. Nunca tomei nenhum tipo de remédio para essas dores nas costas. Poderia ter tomado. Mas não tomei. Quem tem autoridade para definir se tenho ou não um problema? Minha realidade de autonomia plena ou um exame de imagem?


Isso tudo me fez perceber que “ter um problema na coluna”, mesmo um problema aparentemente sério como 2 (possivelmente 4) hérnias na lombar, não é motivo para alguém evitar se movimentar e se relegar a uma gaveta de disfuncionalidade e sedentarismo. Pelo contrário. Evitar movimento é o caminho para aumentar o problema. Ao não se mover, você e seus tecidos se tornam cada vez mais frágeis, você se torna cada vez mais ignorante a respeito da sua própria condição física e como lidar com ela e seu sistema nervoso como um todo fica cada vez mais suscetível a emitir sinais de dor. (falo sobre isso em outro texto sobre dor)


Como eu disse acima, quase todo ser humano com mais de 40 anos pode considerar que tem um problema, se fizer uma ressonância magnética da sua coluna. Mas nem todos se identificam como “alguém com um problema”. Infelizmente uma parte considerável dos profissionais de saúde contribuem para piorar esse quadro, estabelecendo relações de causa e efeito inexistentes entre assimetrias e dores e aconselhando pacientes a evitar e ter medo de se movimentar. Movimento é uma função fisiológica essencial. É o único caminho de uma reabilitação real.


Se identificar como alguém que “tem um problema” acaba se tornando uma profecia auto-realizável. Pois ao se definir dessa forma você arranja uma boa desculpa para evitar certas atividades, e ao evitá-las, você de fato vai se tornando alguém que, cada vez mais, “tem um problema”. Cada vez mais terá que cuidar dos sintomas (dor) e cada vez menos terá condições de agir sobre a causa (falta de movimento).


Acho que é justo afirmar que somos a cultura humana mais ignorante em relação ao próprio corpo que já habitou esse planeta. Nos afastamos tanto da nossa fisicalidade que esquecemos princípios naturais básicos tais como o da adaptação. Na natureza, o que não é usado é descartado e o que é usado é reforçado. Mas fomos tão iludidos pelo “sucesso tecnológico” de remédios e aparelhos, que supomos que essas tecnologias vão nos “consertar” sozinhas, como se nosso corpo fosse um carro que, de tempos em tempos, deve ser levado para a oficina. Esquecemos que, independentemente de toda essa tecnologia, ainda somos um corpo deve respeitar regras biológicas e evolutivas.


Há muita falta de compreensão, e eu diria que grande parte do problema está dentro das próprias instituições formadoras de profissionais no campo da saúde. Mas também fico feliz de ver que, aos poucos, as coisas estão evoluindo. Hoje já é mais raro um médico ver uma hérnia e mandar seu paciente direto para a faca. Até porque a quantidade de comprovações de que muitas cirurgias não são melhores do que placebo é assustadora. Também não faltam evidências a respeito dos malefícios do excesso de diagnósticos e da catastrofização causada em pacientes por imagens de discos vertebrais deslizando (obs. eles NÃO deslizam!), nervos pinçados e coisas do tipo.


Se, por um lado, os remédios, ou qualquer intervenção externa, ainda são tidos como “solução” em vez de “paliativo”, pelo menos já é um avanço que o movimento seja cada vez mais recomendado como condição para qualquer reabilitação.


Mas o que penso que ainda estamos muito longe de entender como cultura é que, qualquer processo de cura, de reabilitação, precisa envolver mudança e aprendizado do próprio sujeito que está se reabilitando. Mesmo em um ambiente de reabilitação física, a maioria dos profissionais ainda tratam seus pacientes como objetos de intervenção passiva. Essa atitude paternalista acaba aumentando ainda mais o nível de dependência dos pacientes em relação a esses profissionais. E há um incentivo mercadológico para isso. Quanto mais dependentes os pacientes, mais dinheiro a indústria faz como um todo.


Mas devemos perceber que intervenções externas, sejam remédios, cirurgias ou mesmo terapias, por melhores que sejam, são apenas paliativos ou no máximo facilitadores em tempos de crise. A recuperação só acontece de forma mais profunda ou até definitiva através da tomada de responsabilidade e de mudanças realizadas pelo próprio sujeito em sua vida. Enquanto seguirmos esperando que outras pessoas ou tecnologias “nos consertem”, seguiremos sem solução para “os nossos problemas”.


Não somos máquinas que devem apenas ser levadas para o conserto de tempos em tempos. Não é assim que o corpo funciona. Precisamos de estímulos para nos adaptar. Ninguém vai “nos consertar”. Enquanto não tomarmos as rédeas da nossa saúde, dificilmente deixaremos de ser “uma pessoa com problema”.


É claro que a exposição deve ser gradual, considerando as possibilidades de cada corpo. Nosso corpo não é um interruptor que tem apenas a função “ligado” ou “desligado”. Exposição gradual a stress seguida de alimentação e repouso de qualidade são o melhor caminho que existe para qualquer processo de reabilitação. (falo sobre isso em outro texto)


E em muitos casos um acompanhamento profissional é fundamental. Mas o caminho a se trilhar deve ser o de construir autonomia, no sentido de retomar a função plena do seu corpo sem precisar de nenhum tipo de bengala externa. Se você se consulta com um profissional da saúde em um processo de reabilitação e ele não tem um plano para o seu retorno à vida normal, ou pior, te diz que você “nunca mais vai poder praticar tal atividade”, te dou um conselho bem direto. Troque de profissional.


Então, a resposta para a pergunta: “tenho um problema na coluna. Movimento é para mim?” é:

- Claro. Movimento é para todos. Tudo que é vivo se move.

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