Evolução e saúde: como a perspectiva evolutiva nos ajuda a entender sobre nossa saúde.
Atualizado: 12 de out. de 2021
Quem me acompanha há um tempo sabe que tenho muitas críticas à forma como cuidamos da nossa saúde. E penso que boa parte desses equívocos vem das próprias instituições de ensino na área da saúde. Neste texto pretendo apresentar um panorama mais amplo dessa questão. Esse é um texto mais longo do que os que costumo escrever, mas penso que talvez seja o que de forma mais completa resume a minha visão sobre o nosso corpo e a nossa saúde. E também acredito que entender alguns dos princípios que trago nesse texto podem mudar drasticamente a forma como você encara seu corpo, sua saúde e seus hábitos.
Penso que profissionais da saúde, apesar de terem vasto conhecimento técnico, muitas vezes pecam em raciocínios elementares sobre como o corpo funciona. Acredito que a falta de aplicação de conceitos da biologia evolutiva está na base de boa parte do problema. Essa realidade está mudando lentamente e espero poder contribuir para essa mudança de alguma forma.
Abaixo darei alguns exemplos do que quero dizer por “erros elementares” a respeito de como o nosso corpo funciona. Certamente as afirmações a seguir lhe soarão familiares e é capaz de você inclusive considerar a maioria delas como verdades auto evidentes. Depois de apresentá-las irei, uma por uma, mostrar onde considero estar o erro e propor uma forma alternativa de enxergar a questão.
Vamos lá.
“Você nunca mais vai poder fazer isso”. Não é incomum vermos médicos com anos de experiência, falando para pacientes com dor que eles nunca poderão retornar às suas atividades esportivas porque “elas fazem mal”. Até porque grande parte deles ainda consideram que dor e lesão são sinônimos (nesse texto trato especificamente sobre a questão da dor)
Repouso, gelo e remédio. Ou cirurgia. Outro caso comum é chegarmos a um médico com dores ou com uma lesão e a recomendação de “tratamento” ser repouso, gelo e remédio e, quando estes não funcionam, o próximo passo só pode ser uma intervenção cirúrgica. Isso quando não nos recomendam uma cirurgia logo de cara.
“Você não pode carregar peso”. Também não é nada raro ver fisioterapeutas ou profissionais de educação física pedindo para pacientes idosos “evitar carregar peso” pois isso pode machucá-los. Como solução prescrevem exercícios de pranchinha ou abdominais para “fortalecer a musculatura abdominal”.
“Sua postura é torta. E isso causa sua dor”. Também é comum escutar que dores musculoesqueléticas são causadas por “má postura”, por “sentarmos torto” ou coisas do tipo. E supor que achados em exames de imagem são “causa” da dor que sentimos.
“Precisamos comer 5 refeições por dia. E carne causa câncer”. Ouvimos constantemente nutricionistas formados, replicando mitos sem sentido como “temos que comer de 3 em 3 horas”, “carne causa câncer” ou abominando o jejum como uma “dieta da moda”.
“Só calorias importam”. Também é senso comum entre nutricionistas, que emagrecimento e engorda são uma questão puramente aritmética. Calorias que entram e calorias que saem.
“Máquinas são mais seguras e, portanto, melhores”. Não é raro vermos educadores físicos que quase não prescrevem trabalhos com peso livre e recomendam para seus alunos apenas exercícios em aparelhos “por serem mais seguros”, ou então aderem às novas modas de botar as pessoas em cima de bolas “bosu” enquanto realizam agachamento para “trabalhar músculos estabilizadores”.
“Tênis, tênis, tênis. Quanto mais amortecimento melhor”. E para finalizar, a ideia onipresente na nossa cultura, de que para correr precisamos de um tênis de corrida “para minimizar o impacto”.
Todas essas recomendações que eu descrevi podem parecer desconexas, mas defendo que todas elas têm uma mesma origem. O desconhecimento das bases da biologia evolutiva.
Apesar de “A origem das espécies” de Charles Darwin ter sido publicado em 1859, demorou muito tempo para ser aceito até mesmo no meio científico. Mesmo assim é espantoso ver que, em pleno século XXI, a revolução que a sua teoria causou e os recentes avanços no estudo da biologia evolutiva ainda não atualizaram diversas áreas do conhecimento que, em tese, deveriam ter sofrido imediatamente uma profunda revisão à luz desse conhecimento.
Evolução é a base
A evolução é a raiz de toda a função biológica. Quase tudo que é biológico só existe pois, em algum momento na história evolutiva, foi uma adaptação necessária à sobrevivência de determinado organismo. Toda a biologia só faz sentido à luz da evolução. E toda a ciência da saúde só faz sentido à luz da biologia. A biologia evolutiva deveria ser a base de todo raciocínio na medicina, fisioterapia, nutrição e mesmo na psicologia.
Pablo Santurbano no livro “Evolução e Movimentação Humana” aponta alguns dos motivos para isso não acontecer. O primeiro deles é puramente cronológico. Os pilares da medicina contemporânea foram construídos antes da maior parte dos avanços na ciência da biologia evolutiva. As bases da educação física moderna e da fisioterapia contemporânea foram criadas no final do século XVIII, início do XIX, antes de Darwin publicar “A origem das espécies”. Foi daí, por exemplo, que surgiram movimentos como o “polichinelo” e outros padrões estereotipados, construídos em um contexto industrial e militarista mas que não tem nenhum fundamento biológico evolutivo.
No entanto, mesmo depois da consolidação da teoria evolutiva nos meios científicos, esses campos não foram atualizados. É evidente que motivos culturais como a religião, contribuíram - e ainda contribuem - para isso. Os manuais de cinesiologia também seguiram isolados do conhecimento evolutivo, baseando-se apenas em métodos dissecativos (falarei mais disso adiante), que deram origem aos mitos de que músculos podem ser considerados e tratados de forma isolada no corpo humano. “Até algumas décadas atrás nenhum procedimento realizado com regularidade na fisioterapia, ou até mesmo na medicina, era respaldado por evidências científicas.” (p.240) Afirma Pablo Santurbano. Também vale ressaltar que a educação física no século XX sofreu muita influência de praticantes de fisiculturismo, que moldaram boa parte do que são as academias atualmente.
Hierarquia científica
Existe uma hierarquia na estrutura científica onde ciências que lidam com fenômenos mais simples, e portanto que podem chegar a conclusões mais certeiras, devem servir de base para as mais complexas e, portanto, menos certeiras. Nesse sentido, a matemática, depois a física e a química são a base do conhecimento humano. Tendo esses saberes como base, está a biologia, que por sua vez é (ou deveria ser) base das ciências da saúde.
Um axioma matemático tem uma autoridade que dificilmente será refutada nos próximos anos ou décadas (mas ainda é e deve ser possível). Um químico ou um físico quando fala de leis da natureza, dificilmente estará falando de algo sem sentido. A biologia já se encontra na interseção entre as ciências “duras” e as “moles”. Por tratar de fenômenos muito mais complexos do que a física e a química, já deve ter mais cuidado com suas conclusões. A como a medicina, a fisioterapia, a educação física ou a nutrição, são saberes vinculados diretamente ao saber biológico. Portanto, assim como uma afirmação biológica não pode negar uma lei da física, uma afirmação da medicina não pode negar leis biológicas.
Portanto, supor que um profissional de saúde possa desempenhar um bom trabalho sem conhecimento de base da biologia evolutiva é como supor que Einstein poderia desenvolver a teoria da relatividade sem conhecimento da lei da gravidade ou das leis da termodinâmica. Não faz sentido. Afinal, a evolução é a base que sustenta todos os porquês da biologia. Como já foi dito, a biologia humana só faz sentido a partir da evolução. Sem ela, temos apenas fatos desconexos sobre nós mesmos, mas não há forma de construir um saber integrado do todo.
É essa lacuna que nos faz aprender por exemplo, em uma aula de anatomia, que o músculo reto femoral tem origem na espinha ilíaca e no acetábulo e tem a função extensora da articulação do joelho. Não paramos em nenhum momento para pensar que, supor que a “função” de um músculo é estender uma articulação não nos diz nada a respeito da sua função. O fundamental, quando pensamos na função de algum músculo é entender sua função biológica evolutiva. Isso quer dizer que não apenas o reto femoral, mas os músculos das nossas pernas como um todo foram construídos para nos fazer caminhar, saltar, agachar e tantos outros movimentos fundamentais para a nossa sobrevivência. É fundamental entender como essa função foi aplicada no contexto da nossa evolução. Quando pensamos dessa forma, fica mais fácil perceber porque o trabalho de mera contração isolada dos músculos do quadríceps em uma cadeira extensora não é suficiente para nutrir nossas necessidades básicas de movimento.
O método dissecativo
Boa parte do que entendemos de anatomia e cinesiologia hoje, e que serve de base para o conhecimento dessas disciplinas a respeito do corpo humano, foi construído a partir do método de dissecar cadáveres. Esse método, apesar de responsável por avanços valiosíssimos no conhecimento humano, por motivos óbvios, acaba produzindo uma negligência problemática a respeito de como o corpo humano vivo e em movimento funciona. A pergunta sobre o como, o porquê e para que os movimentos existem, pergunta essa feita pela biologia evolutiva, não é feita pelos manuais de cinesiologia que embasam o conhecimento do corpo dessas disciplinas.
Esse fato também contribui para a ideia de que para reabilitar a função de um corpo podemos simplesmente isolar e fortalecer um músculo de forma desligada de um contexto. Essa visão segmentada e fragmentada do corpo só é possível quando consideramos um corpo morto, onde mover um músculo não tem impacto sobre todos os outros. Tal visão ainda foi exacerbada na educação física por conta da cultura do fisiculturismo cujo objetivo era simplesmente inchar músculos de forma isolada, sem nenhum tipo de preocupação com a função.
Recentemente alguns profissionais, apesar de terem mudado seu discurso e começado a falar do corpo de forma mais integrada, ainda demonstram uma falta de compreensão a respeito do conhecimento evolutivo e do porquê somos o que somos e fazemos o que fazemos.
Agora que já estabelecemos o panorama geral da coisa, vamos aos exemplos que citei no início do texto, para mostrar, na prática, como um conhecimento de base da ciência evolutiva é chave para não emitir opiniões sem sentido a respeito de como nosso corpo funciona. Vamos dividir as questões por área, começando pela medicina e fisioterapia, passando pela nutrição e terminando com a educação física.
MEDICINA e FISIOTERAPIA
“Você nunca mais vai poder fazer _______________” (insira aqui sua atividade física de preferência)
Começamos pela recomendação médica de “parar com as atividades” pois elas “fazem mal”. Vamos lá. Nós humanos, da espécie homo sapiens, somos animais cujo sucesso evolutivo dependeu, em grande medida, da nossa capacidade de se mover em bipedia, por longos períodos de tempo. A caça de persistência, ou seja, caçar animais até que eles não suportassem mais fugir, era a principal forma como nossos ancestrais conseguiam alimento de qualidade para si e para a tribo. Junto com isso, tínhamos que lutar contra presas e predadores, carregar peso extra constantemente (crianças, alimento, ferramentas, matérias primas…), e eventualmente rastejar, rolar, saltar, nos pendurar, arremessar, escalar... Nossas estruturas anatômicas foram todas moldadas para esses objetivos. Que são basicamente se mover constantemente e de forma variada.
É sabido entre neurocientistas que o motivo pelo qual organismos têm um sistema nervoso, é para produzir movimentos complexos. Movimento é uma demanda neurológica e fisiológica básica introduzida de forma profunda na nossa biologia pela evolução.
Felizmente nenhum (ou quase nenhum) médico, hoje recomendaria o sedentarismo pleno. Mas a facilidade com que eles descartam a possibilidade do paciente voltar às suas atividades físicas e as atividades substitutas geralmente propostas por esses profissionais demonstram um desconhecimento desse fato biológico básico. Fazer 3 séries de 30 segundos de pranchinha ou de 8 repetições de desenvolvimento de ombro em uma máquina, ou apenas caminhar (apesar desse pelo menos ser um movimento natural à nossa espécie), não darão conta das necessidades de movimento do nosso corpo. E muitas vezes a atividade que o profissional está proibindo por “fazer mal” é muito mais nutritiva física e existencialmente do que as alternativas apresentadas por ele.
Gelo, repouso e remédio.
Quem nunca se machucou, foi a um hospital ou a um médico, e voltou para casa com receita de um remédio analgésico e ou anti-inflamatório, recomendação de repouso e gelo? Pois é. Essa é uma prática extremamente difundida, que também só faz sentido se esquecermos qualquer conhecimento de biologia evolutiva básica. Pois vejamos. Grande parte das dores musculoesqueléticas e mesmo das lesões que ocorrem por motivos bobos, são decorrência da incompatibilidade evolutiva entre o meio onde evoluímos para prosperar e o meio onde vivemos hoje. Nosso organismo foi criado para se movimentar de forma generalista, muitas horas por dia. Mas hoje vivemos em um ambiente de conforto e sedentarismo extremo, onde realizamos poucos movimentos em termos de volume e abrangência.
Entender isso nos faz ver que a causa fundamental que gera boa parte das dores e até lesões no nosso corpo é a falta de movimento. A falta de estímulos motores faz com que nosso corpo se fragilize e enfraqueça. Portanto, tomar um analgésico, aplicar gelo para mascarar a dor, e repousar, apesar de atenuar os sintomas, não vai atuar de nenhuma forma sobre as causas mais importantes daquela dor. Além disso, se sabemos que o processo inflamatório é um processo natural que sinaliza justamente a resposta do corpo a uma lesão. A ideia de tomar um anti-inflamatório também pode ser uma tentativa de silenciar sintomas, silenciar mecanismos ancestrais de cura, para produzir um conforto ilusório e temporário. É claro que a inflamação excessiva, sobretudo a crônica, deve sim ser controlada, mas a tentativa de evitar qualquer processo inflamatório no nosso corpo acaba gerando o efeito inverso que é o de fragilizar e não de curar.
E por último, a recomendação de estimular o paciente a expor, gradativamente, seu corpo a mais movimento como base do processo de reabilitação, raramente é feita. Infelizmente uma grande parte dos tratamentos na área de saúde ainda se preocupam muito mais com administrar níveis imediatos de desconforto do que com produzir de fato uma recuperação duradoura e definitiva.
Não é à toa que o famoso método RICE (rest, ice, compression, elevation), repouso, gelo, compressão e elevação, ainda usado por profissionais desatualizados como tratamento, foi abandonado por seu próprio criador, Dr. Gabe Minkin, que em 2014, publicamente afirmou que seu método, apesar de muito utilizado, acaba atrasando mais do que acelerando o processo de cura. Apesar dessa demonstração de honestidade científica do próprio criador do método, muitos profissionais seguem utilizando esse tratamento anacrônico por não entender a importância central do movimento para a nossa biologia.
“Você não pode carregar peso”
Quem, com mais de 40 anos, nunca ouviu essa frase vinda da boca de um profissional de saúde? Pois é, mais uma recomendação resultante do desconhecimento sobre biologia evolutiva. Já sabemos que nossas estruturas anatômicas evoluíram em um contexto onde constantemente tínhamos que carregar peso, das mais diversas formas. As células do nosso tecido sentem e respondem às cargas impostas a elas, se fortalecendo na medida em que aplicamos alguma sobrecarga, e se enfraquecendo, caso não recebam nenhum tipo de estímulo mecânico. Trata-se de um mecanismo adaptativo básico. Na natureza, tudo que é estimulado se fortalece. E o que não é acaba sendo descartado.
Qualquer marombeiro conhece esse mecanismo. Precisamos estressar as fibras musculares para que, ao se regenerarem, elas fiquem mais fortes. Mas com ligamentos, tendões e ossos, ou qualquer tecido do nosso corpo, o processo é o mesmo. A realidade nos envia estímulos o tempo todo. Sinalizações. E o corpo se adapta conforme esses estímulos. Se adapta para poder suportá-los melhor. E para conservar energia e poder gastá-la com o que de fato é importante, ele descarta aquilo que não é estimulado.
Mas agora voltemos para uma pessoa de mais de 40 anos. Nessa idade, em um ambiente natural, a pessoa já passou da sua idade reprodutiva. Portanto ela terá menos necessidade de demonstrar força, e menos condições de se envolver em situações de caça ou que demandam grandes esforços físicos. Ela já cumpriu seu papel reprodutivo. Por isso, a partir dessa idade, o processo natural de perda de massa muscular e óssea começa a acontecer. Sobretudo entre mulheres, que são as mais aconselhadas a não carregar peso. Agora imaginemos que, nos dias atuais, essa pessoa provavelmente já era sedentária antes mesmo dos 40 e, portanto, não precisou desenvolver muita musculatura em sua juventude, e que agora passa pelo processo de perda natural da pouca massa muscular que ela tem. A última coisa que essa pessoa precisa é evitar carregar peso. Pois carregar algum tipo de carga, claro que na dosagem adequada à sua capacidade, é a única coisa que pode retardar os efeitos inevitáveis da perda de massa muscular e densidade óssea.
Mas quando médicos, por exemplo se deparam com osteoporose (ossos com menor densidade, quebradiços, porosos, frágeis), em vez de recomendarem exposição a cargas progressivas para sinalizar o corpo de que ele precisa se adaptar, aumentando a densidade óssea, ou melhor, até recomendando o trabalho com cargas preventivo para todos seus pacientes saudáveis, sobretudo depois dos 40 anos, fazem o exato oposto. Dizem que o paciente deve evitar carregar peso e recomendam tomar mais cálcio, como se essa substância fosse magicamente produzir resultados no corpo, mesmo sem nenhum tipo de sinalização do mundo externo para tal.
Sim, o cálcio (e a vitamina D) são importantes no processo de prevenção e tratamento de osteoporose. Mas simplesmente medicar suplementos não dá conta de entender a origem do problema da osteoporose em primeiro lugar. Achados antropológicos mostram que essa era uma condição inexistente entre nossos ancestrais. O motivo pelo qual nossos ossos vão se tornando “isopor” é claramente pela falta de estímulo (carga) que aplicamos sobre eles ao longo da vida, em total desconexão com o ambiente para o qual fomos preparados para sobreviver. Suplementar cálcio para alguém completamente sedentário ajuda, mas é como encher uma banheira furada. Seguimos atuando sobre os sintomas e não sobre a causa.
Enquanto esse diálogo da área de saúde com a biologia evolutiva não acontece, fisioterapeutas vão seguir passando exercícios como pranchinha ou movimentos lineares isolados em aparelhos que não tem nenhuma relação com a função para as quais nossos tecidos evoluíram para funcionar. Tentemos imaginar uma situação onde nossos ancestrais teriam que ficar 2 minutos parados em posição de prancha, ou algo parecido. Se queremos produzir estabilidade do nosso centro, nada melhor do que jogar uma carga nas costas e caminhar, agachar, ou até ficar parado. É esse tipo de trabalho que nossa estrutura está preparada para fazer e se adaptar. Mas o que vemos por aí são muitas pranchinhas e poucos levantamentos terra, agachamentos livres ou caminhadas com peso, sobretudo em populações idosas, que são as que mais precisam.
Movimentos “errados” = Lesões = Dor
Raras são as pessoas que desconfiam dessa associação perversa. Afinal, ela ainda está presente entre muitos profissionais da saúde. A ideia de que existem “movimentos corretos” e “movimentos errados” em si também fere princípios básicos da biologia evolutiva.
Supor que existem movimentos corretos e movimentos errados significa desconsiderar a nossa capacidade de adaptação biológica. Não podemos pensar que certos movimentos “fazem mal” sem considerar o indivíduo que está realizando esse movimento e suas capacidades em um dado momento.
Sim, a biologia evolutiva nos diz que há movimentos para os quais estamos mais ou menos adaptados naturalmente a realizar. Mas a capacidade de adaptação no decorrer das nossas vidas é brutal. E sim, existem formas mais ou menos eficientes de se movimentar. Mas o próprio conceito de eficiência é relativo quando falamos de organismos biológicos complexos e será diferente dependendo do indivíduo que consideramos.
Não precisamos ir muito longe para perceber isso. Basta sair na rua e ver pessoas caminhando. Perceberemos claramente uma série de diferentes estratégias para realizar esse ato. Se considerarmos que nossos corpos seguem a lei básica da conservação de energia e, portanto, que estas pessoas se movimentam da forma mais eficiente possível dentro das suas capacidades naquele momento, fica claro como eficiência em movimento é um conceito relativo.
É importante notar que, por eficiência, me refiro à noção de realizar uma tarefa com menor gasto energético possível. Não estou afirmando que aquela é a melhor forma de caminhar possível para aquela pessoa. Apenas que é a mais eficiente.
Portanto, um conceito importante da biologia evolutiva que é importante ser compreendido é o da variabilidade biológica. Pequenas mutações aqui e ali, que geram a variabilidade biológica e fazem indivíduos não serem exatamente iguais, é o que permite a evolução em primeiro lugar. E vimos que diferentes corpos, terão conceitos de eficiência diferentes. O que é um padrão de movimento eficiente para um corpo pode não ser para outro.
Para citar outro exemplo, alguém que tem mais mobilidade de ombros pode ter como estratégia motora disponível e relativamente eficiente, carregar algo pesado acima da cabeça com braços estendidos. Outra pessoa com mobilidade mais restrita, pode preferir carregar o peso mais a frente do corpo, com braços flexionados. Eficiência de movimento é um conceito relativo que leva em conta desde a sua estrutura óssea, sua capacidade muscular, seus alcances articulares, capacidade de coordenação, até o contexto onde você se insere e a composição química do seu organismo em um dado momento.
Em segundo lugar, é fundamental entender que somos um sistema complexo. A relação do nosso sistema nervoso com nossos músculos não é uma relação linear de simplesmente ligar ou desligar determinados músculos para realizar movimento. O sistema nervoso tem infinitas formas de produzir movimento a partir da conexão com cada tecido do nosso corpo, em diferentes intensidades, de acordo com as estratégias e recursos que ele tem a disposição em um dado momento. Isso quer dizer que se você realizar 10 agachamentos aparentemente iguais, nenhum deles vai ter sido plenamente igual. Em cada repetição, seu sistema adotou pequenas alterações em padrões de ativação muscular para se adequar às mudanças na situação.
A fadiga altera nossos padrões de movimento. Na medida em que determinadas estruturas vão se cansando, por exemplo, o sistema nervoso aplica diferentes estratégias, ativando outras estruturas em maior ou menor medida, para realizar aquela tarefa. (Em outro texto falo com mais detalhes sobre isso) O nível de stress no nosso organismo nos transforma e, portanto, pode transformar nossas capacidades e estratégias de movimento. (Falo sobre os efeitos do stress no nosso organismo em outro texto). O medo nos faz realizar movimentos de forma diferente. O contexto social molda a forma como nos movemos. Nosso nível e foco de atenção mudam a forma como nos movemos. Cada mudança, por menor que seja, no ambiente ou no indivíduo, vai alterar a maneira como nós realizamos uma tarefa.
Portanto, mesmo em um ambiente altamente controlado, não há forma de controlar todas essas variáveis. Porque mesmo que conseguíssemos construir um ambiente plenamente estável (o que já é uma fantasia), não temos como manter o indivíduo plenamente estável. Nós mudamos e nos adaptamos a cada instante. Então se alguém te disse que há como fazer isso, fuja. Ou essa pessoa ignora a forma como funcionamos ou ela está mentindo provavelmente para te vender algo.
Entender tudo isso, e também entender que se não fôssemos organismos altamente adaptáveis e resilientes, nossos ancestrais não teriam sobrevivido às condições inóspitas da savana africana, nos faz perceber que talvez não seja uma boa ideia pensar em termos de “movimentos corretos” e “movimentos errados”. Pois se somos diferentes uns dos outros, se usamos infinitas estratégias diferentes para produzir movimento, se somos adaptáveis e resilientes e não temos controle sobre a demanda que estamos gerando sobre cada estrutura do nosso corpo, não há como definir o que seriam “movimentos corretos” e “movimentos incorretos”.
Pelo contrário, a atitude a se tomar é a de estimular nosso corpo a ter cada vez mais estratégias motoras, cada vez mais liberdade e possibilidades de movimento, resiliência e capacidades para poder se adaptar de forma mais eficiente às demandas impostas pelas tarefas da vida e pelo ambiente. Estimular a variabilidade motora e a execução de diversos gestos e padrões de movimento deve ser a atitude de um profissional da saúde. E não limitar nossas possibilidades de movimento a padrões estereotipados, tidos como “corretos” por uma ciência que, claramente, já se encontra ultrapassada.
Isso tudo não significa descartar completamente livros de anatomia nem de cinesiologia. Significa apenas dar a devida importância para suas contribuições. Entender que a relação “movimento errado” e “lesão” é uma relação altamente complexa que deve levar em conta aspectos que vão muito além da física muscular isolada (anatomia) e mesmo além da física muscular integrada (cinesiologia).
E essa compreensão tampouco deve nos levar à complexificação excessiva de tratamentos. Pelo contrário, ela deve se basear na realidade do cotidiano e das demandas de cada pessoa, tentando construir capacidades de maneira global em torno daquilo que as pessoas precisam e gostam de realizar em termos de movimento nas suas vidas.
NUTRIÇÃO
“Você tem que comer de 3 em 3 horas”
Esse é, talvez, o mito mais infundado de todos os que tratarei aqui. O campo da nutrição, infelizmente, é inundado de desconhecimento dos princípios básicos da biologia humana.
A ideia de comer de 3 em 3 horas foi inventada por Jorge Cruise. Segundo ele, se você ficar mais de 3 horas sem comer, seu organismo entraria no “modo fome”, diminuindo seu metabolismo e queimando músculo. Espanta a facilidade com que um mito tão claramente sem sentido pode fazer um sucesso tão grande entre profissionais.
De novo, biologia evolutiva. Pensemos no ambiente onde nossos ancestrais viveram e que foi o ambiente para o qual evoluímos para prosperar. A savana africana. Um ambiente hostil e de escassez. Nós humanos, até muito pouco tempo atrás em termos evolutivos, não éramos predadores do topo da cadeia alimentar. Portanto, a disponibilidade de uma boa caça não era algo muito comum. Tínhamos que andar muitos quilômetros para poder encontrar qualquer tipo de comida, que nem sempre era de qualidade.
Será que seria possível estarmos aqui hoje, vivos, se tivéssemos um organismo que, depois de 3 horas sem comer, começa a se fragilizar e perder saúde? Muito pelo contrário. Um dos muitos motivos pelos quais estamos aqui hoje é pela nossa capacidade de passar tempos longos sem alimento. Não é à toa que o jejum faz parte de grande parte das culturas milenares humanas. Até certo ponto, da mesma forma que com uma atividade física demandante, nosso corpo se adapta positivamente a esse stress.
É importante citar que Jorge Cruise tinha mais de 20 quilos de sobrepeso, porque essa informação, à luz da biologia evolutiva, também é importante para compreendermos porque ele criou essa teoria. Sabemos que no ambiente ancestral, nossos antepassados não tinham muitos meios de conseguir açúcar. Açúcar, a forma de energia mais rápida que conhecemos, era rara em um ambiente natural. Árvores frutíferas eram a única fonte de açúcar que nossos ancestrais tinham. E em seu ambiente natural estas não são tão comuns, produzem frutas menores do que as modernas, com menos açúcar do que as frutas atuais, são sazonais e altamente demandadas por todo tipo de animal.
Por isso não desenvolvemos mecanismos biológicos para lidar com o excesso de açúcar. Pelo contrário. Somos adaptados a ser recompensados pelo consumo de açúcar e buscar mais sempre que pudermos. O resultado é que, em um ambiente de abundância de açúcar como o nosso, isso cria uma incompatibilidade evolutiva perigosa. Voltando a Jorge Cruise, o “modo fome” que ele realmente devia sentir de 3 em 3 horas, certamente estava relacionado com a dependência do açúcar, que gera uma série de efeitos no nosso metabolismo, e tem como efeito nos levar a querer comer o tempo todo. Como diz Danilo Balu, “nutrição não é ciência, é sentimento”. Nesse caso, literalmente.
Um outro motivo pelo qual é possível sentir fome de 3 em 3 horas, mesmo sem que haja necessidade alguma de se alimentar nessa janela de tempo tem a ver com uma leptina presente no nosso estômago que se chama grelina. A grelina regula em grande medida nossa sensação de saciedade. É sabido que ela opera como um relógio. Se estamos acostumados a comer de 3 em 3 horas, ela vai trabalhar para sinalizar fome nesse espaço de tempo. Isso é apenas um reflexo condicionado, um hábito que essa leptina adquire como adaptação aos nossos hábitos. Inclusive, pessoas que fazem jejum por um período mais longo de tempo sabem bem que a sensação de fome estimulada pela grelina vai embora depois de algum tempo mesmo que não comamos nada. Portanto, a fome de 3 em 3 horas trata-se muito mais de uma sensação condicionada pelo hábito do que de uma necessidade fisiológica.
Não há nenhum estudo sério que eu conheça mostrando qualquer tipo de benefício para a nossa saúde advindo desse tipo de regime alimentar. Pelo contrário. Há diversos estudos que mostram os benefícios do jejum, que esse sim era condição de vida presente entre nossa espécie há milhões de anos. (não por escolha mas por necessidade a maioria das vezes).
Também convém citar que a indústria de “alimentos” processados também se beneficia bastante dessa miopia, e sofreria um sério golpe se percebêssemos que podemos nos manter plenamente saudáveis nos alimentando menos de 5 vezes por dia. A ideia de que “precisamos” comer algo a todo momento nos leva a consumir todo tipo de “lanchinho processado” o que é ótimo para a indústria, mas péssimo para a nossa saúde.
“Carne causa câncer”
Esse certamente será o tópico mais controverso de todo o texto. Até porque não é uma afirmação reproduzida somente por profissionais pouco informados, sem nenhum tipo de “respaldo científico”. A ideia de que carne nos faz mal adquire cada vez mais autoridade entre profissionais respeitados nos meios científicos e por isso é algo que muitos tomam como uma verdade auto evidente.
Mas antes de disparar gatilhos que são facilmente disparados quando se fala desse tema, é importante deixar claro que não acredito que nenhum tipo de dieta funciona para 100% dos seres humanos nesse planeta. Somos 8 bilhões de seres humanos, e já entendemos a importância de sermos diferentes uns dos outros e também de que somos organismos complexos. Em sistemas complexos, como cada parte do todo se conecta e interage, influenciando outras partes em um efeito infinito de reações em cadeia, pequenas diferenças entre indivíduos, podem significar grandes diferenças na forma como funcionamos e respondemos a diferentes alimentos. É por isso que nenhuma dieta específica serve para todos os seres humanos. Genética, criação, cultura e contexto entram como variáveis fundamentais para definir que tipo de alimentação é ideal para uma pessoa.
Portanto, apesar de ter minha opinião sobre o que funciona para a maioria das pessoas, não venho aqui defender nenhum tipo de dieta específica, apenas derrubar o que considero serem mitos a respeito da nossa saúde, usando a biologia evolutiva como ferramenta.
Dito isso, voltemos a ela. Primeiro é importante salientar que há pouca dúvida entre a maior parte dos pesquisadores da evolução sobre o papel da carne no processo de evolução humana. Neste artigo, de Michael Richards, o autor faz uma revisão da evidência presente a respeito da alimentação dos nossos ancestrais e, apesar das dificuldades que aponta nos estudos, deixa claro que todas as formas de tentar responder a essa pergunta nos levam ao fato de que nossos ancestrais eram de fato, onívoros carnívoros. Yuval Harari, no best-seller Sapiens, também descreve esse processo. A diminuição do tamanho da nossa mandíbula, para triturar e extrair nutrientes de vegetais fibrosos, junto com a diminuição do tamanho do nosso intestino, para processar e também digerir esses nutrientes, possibilitou o aumento do tamanho do nosso cérebro (intestino e cérebro são as partes mais demandantes de energia do nosso corpo). Além disso, a densidade nutricional superior desses alimentos também foi responsável por nos permitir tempo livre para desenvolver artefatos culturais (de socialização a ferramentas ou abrigo) que possibilitaram nossa prosperidade em tempos ancestrais. A capacidade de manipulação do fogo, posteriormente, que nos permitiu cozinhar a carne, acelerou ainda mais o processo civilizatório. Loren Cordain, um renomado pesquisador da área, também defende que os ácidos graxos presentes nos ossos e até no cérebro de animais ruminantes, foram fundamentais para o desenvolvimento do cérebro do humano moderno.
Um fato ainda mais consensual entre pesquisadores é que a transição dos nossos ancestrais de caçadores coletores, para agricultores, há aproximadamente 12 mil anos, trouxe mudanças importantes que começaram a aparecer nos registros arqueológicos. Estudos antropológicos com tribos caçadoras-coletoras ainda existentes também mostraram a mesma realidade. Ossos mais frágeis e menores, dentição torta, traços de doenças como câncer, doenças do coração, diabetes, obesidade começaram a aparecer nos registros fósseis. Essas doenças não existiam entre tribos caçadoras coletoras antigas ou modernas. e por isso foram chamadas de "doenças da civilização". E, infelizmente, essa epidemia de “doenças da civilização” vem crescendo de forma assustadora desde meados do século XX.
Ora, como pode ser que populações que baseavam uma quantidade significativa do seu consumo em alimentos de origem animal não sofriam de nenhum desses males? Estudos arqueológicos e antropológicos mostram que três quartos das populações caçadoras coletoras obtinham mais da metade da sua energia de alimentos de origem animal. Negar que a caça foi um fator fundamental na história da espécie humana é negar evidências sólidas da biologia evolutiva que mostram como tanto nossa estrutura anatômica como neural foi em boa medida moldada por esse evento da caça.
Em termos anatômicos, por exemplo, no livro Evolução e Movimentação Humana, Pablo Santurbano aponta o fato de termos um glúteo médio mais desenvolvido pela necessidade de caminhar longas distâncias para realizar a caça de persistência. Do ponto de vista neural, Fred H. Previc defende que nosso próprio sistema dopamínico (neurotransmissor de motivação para ação, precursor da curiosidade e engenhosidade humanas) foi desenvolvido pelo ambiente da caça.
Sim, hoje vivemos em um ambiente diferente e nada impede que a combinação de alimentos saudáveis com outros alimentos não naturais à nossa espécie possa nos fazer mal. Ou que determinados organismos sejam mais ou menos sensíveis a determinados tipos de alimentos. Sem dúvida. Mas isso não muda o fato de que a afirmação “carne causa câncer” não pode fazer sentido.
Seguindo. Se considerarmos que nos aproximados 2 milhões de anos da existência da nossa espécie nesse planeta, fomos onívoros caçadores, e apenas de 12 mil anos para cá começamos a ingerir grãos, como podemos estar tão certos de que grãos são saudáveis e carne faz mal? Só podemos afirmar isso se desconsiderarmos Darwin completamente. Se desconsiderarmos o poder da evolução e da adaptação. 2 milhões de anos são suficientes para produzir adequação biológica de um organismo a um tipo de alimento. 12 mil anos não. No máximo tolerância.
Isso não quer dizer que podemos afirmar de forma categórica que “grãos fazem mal”. Não é assim que funciona. Como já foi dito, somos sistemas complexos. O que a revolução agrícola também fez foi minimizar um espectro amplo de alimentos que compunham a dieta dos caçadores coletores, tornando os agricultores dependentes majoritariamente de poucos tipos de alimento. Portanto, não foi apenas uma substituição de um alimento por outro. Foi também um empobrecimento geral na variedade alimentar dos seres humanos, além de uma considerável sedentarização da população.
E certamente, de maneira geral, somos tolerantes a grãos. E esse é um dos motivos pelo qual chegamos onde chegamos como espécie. Nosso elevado grau de tolerância. E grãos contém substâncias que, sim, podem ser benéficas e saudáveis para alguns indivíduos. Do contrário, não estaríamos vivos comendo tanto quanto comemos hoje. Por isso, alguns podem até prosperar com dietas exclusivas de grãos como fonte de proteína. Mas certamente não são a maioria. Pois não foi com esse alimento que nosso sistema digestivo evoluiu. E dizer que grãos são essenciais para a nossa dieta como população é, no mínimo, um exagero.
Açúcar e óleos vegetais
Sobre o açúcar já falamos acima. Vivemos em um ambiente de incompatibilidade evolutiva extrema. Grande parte da população humana é viciada em açúcar. E o mesmo acontece com os produtos processados e ultra processados. Por isso o surto de doenças da civilização de meados do século XX para cá. Nós não temos mecanismos evolutivos para lidar com esse tipo de alimento. A presença conjunta de carboidratos com gorduras não existe na natureza. A quantidade de açúcar que existe nesses alimentos também é acima de qualquer padrão natural. A maioria das frutas que comemos hoje foram geneticamente selecionadas e têm muito mais açúcar do que as que os nossos ancestrais comiam.
E claro, o óleo vegetal, que em si é um “alimento” ultra processado, não natural à espécie e repleto de elementos perigosos para a nossa saúde, é visto como item básico em qualquer cozinha. Se entrarmos na wikipedia hoje, ou infelizmente até se consultarmos certos nutricionistas, veremos óleos de soja ou girassol elencados na mesma categoria que azeite, por exemplo. Isso esconde um fato fundamental sobre esses óleos. O azeite é apenas a azeitona espremida, portanto um óleo com o qual estamos acostumados a consumir desde tempos imemoriais. Já o óleo vegetal é resultado de um processo químico altamente complexo feito de maneira industrial a temperaturas altíssimas e com resultados na estrutura molecular das sementes. Isso faz com que o nome “óleo vegetal” seja apenas uma forma de esconder em uma palavra aparentemente natural, um alimento extremamente processado, danoso e não natural à nossa espécie. O mesmo pode ser dito em relação à margarina, altamente processada, que é comparada com a manteiga, alimento muito menos processado e mais natural à nossa espécie.
Infelizmente a nutrição é um campo do saber que sofre demais com interesses da indústria alimentícia. É muito dinheiro em jogo. Os interesses estão por todo lado e pecuaristas, criadores de gado também têm uma fatia de responsabilidade considerável nos danos ambientais causados pela indústria alimentícia como um todo. Mas esse é um tema ainda mais controverso que não convém tratar aqui, pois meu foco é saúde humana.
Mas no que diz respeito à saúde, sobretudo após a revolução verde que aconteceu nas décadas de 1960 e 1970, não resta dúvida que a indústria de grãos é quem mais teve peso na produção de estudos científicos enviesados e guias alimentares governamentais. Boa parte das diretrizes alimentares dos Estados Unidos tem como principal função escoar o excesso da produção de milho. Por isso também não há quase nenhuma resistência, há até um certo incentivo, a movimentos bem intencionados como o vegetarianismo e o veganismo.
E foi esse peso, esse lobby, literalmente, que ajudou a criar a ideia de que, apesar de vivermos em um ambiente altamente sedentário, repleto de açúcar, óleos vegetais e produtos ultra processados de todo tipo, a culpada pela explosão de doenças do coração, obesidade, diabetes e câncer nas últimas décadas é a carne, um alimento que nossa espécie consome sem problemas há milhões de anos.
Nesse caso específico, portanto, não se trata apenas de “falta de conhecimento de base” ou de diálogo interdisciplinar com a biologia evolutiva. Essa falta de diálogo e conhecimento acaba sendo necessária para que uma agenda política se imponha. Estamos diante de uma ignorância forçada.
Uma última observação sobre o tema porque é recorrente também esse tipo de argumento. “Nossos ancestrais comiam carne, mas morriam com 30 anos”. Isso é outro mito, fonte de desconhecimento da história evolutiva. Nossos ancestrais viviam tranquilamente até os 70 anos. A expectativa de vida média é distorcida pelo fato do índice de mortalidade infantil entre nossos ancestrais ser gigantesco, assim como de mortes por acidentes (desde ser comido por um predador até uma caça mal sucedida ou cair de uma montanha…). Mas essas mortes nada tinham a ver com doenças da maturidade. Eram questões de falta de saneamento básico, assepsia, vacinas, antibióticos… Uma vez que o indivíduo passasse desses riscos que acometem mais que nada as crianças, mais frágeis nesse sentido, a expectativa de vida deles, mesmo sem nenhum tipo de tecnologia médica de que dispomos hoje em dia, era bastante similar à nossa. Além claro, da inexistência dessas doenças que hoje matam muitas pessoas com 40, 50, 60 anos. Só muito depois da revolução industrial (1789) é que conseguimos, como sociedade, voltar a atingir a expectativa de vida que adultos caçadores-coletores atingiam milhões de anos atrás.
“Jejum é modismo”
Nessa altura do texto, penso que o absurdo dessa afirmação já está auto-evidente. Imagino um caçador coletor, forçado a ficar horas sem comer por inexistência de comida, ouvindo de um nutricionista formado contemporâneo, que “jejum é a dieta da moda”. Ou qualquer seguidor das culturas que praticam jejum há milênios escutando isso da boca de alguém que tem 30 anos de vida. Em outro texto falei mais a respeito do jejum, se interessar, deixo aqui o link.
Calorias que entram, calorias que saem. Só a física explica?
Esse é o mantra mais escutado em visitas a nutricionistas. Quer emagrecer? Consuma menos calorias. Negar essa ideia para seus defensores é tão estúpido quanto negar um dos princípios mais básicos da física, a lei da conservação de energia. Se você consome menos energia do que gasta você diminui. Se consome mais você aumenta. Simples assim. Será? Sim, as leis da física se aplicam ao corpo humano e a todos os corpos. Mas a questão não é que essa afirmação é falsa. É que ela não explica nada. Só descreve um fato. É como dizer que estou com febre porque minha temperatura aumentou. Não estou explicando nada sobre os motivos pelos quais adquiri a febre em primeiro lugar.
Gary Taubes também diz que, afirmar que engordamos porque consumimos mais do que gastamos ou que emagrecemos porque consumimos menos do que gastamos é como dizer que uma sala está mais cheia porque mais pessoas entraram nela do que saíram e mais vazia porque mais pessoas saíram do que entraram. A resposta não está errada. Mas não explica adequadamente o porquê das pessoas estarem entrando e saindo da sala.
Mais uma vez, sem o conhecimento de biologia evolutiva, podemos apenas descrever fatos, mas compreender sua razão requer olhar para a evolução. Entender a biologia evolutiva nos levaria a compreender o que nos leva a querer que entre mais ou menos energia no nosso corpo, e entender também o que nosso organismo faz com o que entra e porque ele escolhe que determinado tipo de energia saia e não outro. Nos leva a entender que a física (energia que sai / energia que entra), é modulada pela química do nosso organismo, pelo nosso metabolismo.
A natureza se adapta. Nós temos um organismo altamente adaptável, responsivo aos estímulos que se apresentam a ele. Não somos apenas um saco vazio onde entra e sai energia. Nosso organismo interpreta tudo que entra e sai do nosso corpo, se adaptando a essa informação e produzindo alterações para aumentar nossas chances de sobrevivência. Portanto, os nutrientes que entram no nosso organismo alteram a forma como ele se comporta e servem como sinalizações para que o nosso metabolismo reaja de uma forma e não de outra. Entender o efeito que certos alimentos produzem no nosso metabolismo é fundamental para explicar o porquê dele fazer o que faz.
Tendo o raciocínio evolutivo em mãos, podemos perceber o porquê de, por exemplo, sempre termos espaço para comer uma sobremesa, independentemente do quão cheio estejamos. Como já vimos acima, o açúcar era altamente valioso pois fornecia uma dose direta de energia para nossos ancestrais. Portanto, não adquirimos nenhum tipo de mecanismo de controle de teto de açúcar.
O mesmo raciocínio nos permite entender porque podemos nos entupir muito mais de comidas processadas do que de um bom bife, por exemplo. Porque não temos mecanismos de saciedade evolutivos para lidar com alimentos que nunca fizeram parte da nossa dieta. No caso dos alimentos processados, além de muito açúcar e químicos, tem uma combinação de carboidrato e gordura que não existem na natureza. Na natureza, carboidratos não tem gordura. E gorduras não tem carboidratos. A união desses dois macro nutrientes em um só alimento gera uma mistura explosiva para a qual nosso organismo não evoluiu para lidar.
Além disso há o recente artigo sobre o modelo carboidrato - insulina que une autores renomados de distintas escolas da nutrição e mostra como determinados tipos de carboidratos simples podem afetar nosso metabolismo, nos levando a sentir mais fome ou menos disposição, sendo portanto os responsáveis por comermos mais ou nos exercitarmos menos. A ordem das coisas então seria inversa de acordo com esse modelo. Nós não engordamos porque comemos demais e somos preguiçosos. Nós estamos preguiçosos e com fome a todo momento porque estamos engordando. (Falo sobre isso em mais detalhes nesse vídeo)
Portanto, entender a biologia evolutiva nos traz outra luz ao mundo da nutrição. Nos faz entender que explicar processos biológicos a partir de mera aritmética energética (o que entra e o que sai) não é suficiente, se não levarmos em consideração processos metabólicos (o que nosso organismo faz com o que entra e o que sai), sem considerar as sinalizações que determinados alimentos geram e provocam no nosso organismo.
Esse desconhecimento faz com que grande parte dos nutricionistas resuma o processo de emagrecimento a um processo de “força de vontade” e “disciplina”, transformando uma questão que é claramente metabólica em uma questão puramente moral.
EDUCAÇÃO FÍSICA
Os aparelhos de academia e as novas modas do mundo fitness. Bandas elásticas, bola bosu e o tênis da nike
Também já espero que tenha ficado claro a essa altura, como os aparelhos de academias tradicionais não dão conta de satisfazer nossas necessidades fisiológicas de movimento. Nosso corpo foi feito para arremessar, socar, saltar, agachar, rastejar, rolar, se pendurar, escalar, se equilibrar. E não para fazer cadeira extensora ou desenvolvimento de ombros em um aparelho. Nosso organismo demanda movimentos globais, integrados e condizentes com aqueles para os quais a nossa anatomia evoluiu para realizar.
Não se trata de jogar no lixo todo e qualquer movimento isolado. Mas entender seus usos e suas limitações. Um aparelho tradicional de academia pode servir para um fisiculturista ou para demandas esportivas muito específicas. Ou mesmo para alguém em fase inicial de um processo de reabilitação. Mas certamente ele não é suficiente para nos preparar e nutrir para as demandas da vida real.
As bandas elásticas, por exemplo, hoje amplamente difundidas em qualquer ambiente de treinamento físico, também são resultado desse desconhecimento ao meu ver. Não se trata de descartá-las completamente como inúteis, mas o furor e a onipresença delas não é justificado se pensarmos à luz da biologia evolutiva. Elas se tornaram tão disseminadas muito mais pela segurança que oferecem do que pela sua função. São ferramentas seguras na medida em que apenas devolvem a carga que nós conseguimos aplicar sobre ela. O nível de tensão delas vai crescendo na medida da nossa capacidade. É mais seguro trabalhar com bandas elásticas do que com cargas reais.
Mas onde poderíamos basear evolutivamente o gesto de caminhar lateralmente em posição de semi agachamento resistido por uma banda elástica? Então, por mais que em certos casos de fragilidade extrema ou em casos muito específicos ela possa ter seu papel, é importante não esquecer que nosso corpo evoluiu carregando cargas externas e não esticando bandas elásticas. Em nenhum lugar da realidade humana, esta era bondosa no sentido de nos devolver apenas a força que aplicamos sobre ela. Pelo contrário.
E aqui chegamos ao último ponto que é a tentativa de profissionais de se “atualizar às novas tendências”, mas ainda sem muito conhecimento de base. O famigerado agachamento livre na bola bosu (uma superfície altamente instável).
Aqui, supostamente, o profissional está resolvendo os dois problemas da abordagem tradicional. Está recrutando a musculatura do corpo todo do atleta no agachamento livre, e ainda recrutando um trabalho superior dos músculos estabilizadores, justamente aqueles que são negligenciados nos aparelhos isolados.
Porém, faltou, mais uma vez, entender Darwin. Nenhum ancestral humano andava em bolas bosu. A estrutura anatômica dos nossos pés foi feita para se relacionar, caminhar e correr em superfícies como grama, terra, areia ou pedra. Nenhuma dessas superfícies se assemelha nem de longe a uma bola bosu. Isso não é suficiente para invalidar de cara esse tipo de estímulo. É apenas uma clara evidência de que, antes de considerá-lo como estratégia de reabilitação, convém saber se há comprovação da sua eficácia (coisa que não existe ainda).
Pois quando algo não tem legitimação evolutiva, o ônus da prova de eficácia deve cair sobre a novidade e não sobre a prática ancestral. Senão, porque sairíamos de superfícies que são naturais à nossa espécie, ou pelo menos mais próximas delas, para trabalhar em superfícies que não tem nenhuma semelhança àquelas para as quais somos adaptados para viver?
O mesmo acontece com calçados. Pablo Santurbano, em seu livro, demonstra de forma bem clara o absurdo que é supor que temos que provar que correr descalço não faz mal, quando essa foi a forma como corremos por milhões de anos. Na realidade é o tênis que tem que comprovar que faz bem. E essa prova, por mais que os executivos da Nike tenham se esforçado há décadas, nunca veio. E provavelmente nunca virá. Pelo contrário. Os malefícios de prender os pés em tênis, hoje são altamente documentados.
A entrada no chão a partir do calcanhar, uma forma de correr totalmente não natural e para a qual não estamos adaptados, se torna uma realidade possível quando usamos tênis altamente acolchoados. Mas esse hábito transforma completamente a dinâmica da transmissão de forças do impacto do chão pelo nosso corpo, gerando uma série de problemas aos quais boa parte dos corredores são acometidos.
É claro que não é a ideia simplesmente sair correndo por aí descalço, sobretudo no concreto (um chão mais próximo do natural do que uma bola bosu, mas ainda não natural). De novo, há que se trazer a biologia. Anos de adaptação e fragilização dos pés dentro de um tênis e a própria alteração do padrão de corrida em decorrência do amortecimento do tênis, nos torna frágeis demais para sairmos por aí correndo descalços. A exposição deve ser gradativa e de preferência em solos naturais à nossa espécie como a grama, por exemplo. Assim como a exposição a cargas e atividades físicas. Mas devemos lembrar que o problema não está propriamente nas cargas ou no impacto. Está na nossa incapacidade de lidar com elas por questões culturais que nos levaram a essa situação de incompatibilidade biológica.
Conclusão
Espero ter te ajudado de alguma forma a compreender melhor como seu corpo funciona, e como adotar uma perspectiva da biologia evolutiva é fundamental para compreendermos nosso corpo e nossa saúde melhor.
Finalizo deixando um agradecimento para pessoas de diferentes áreas do saber humano que, em maior ou menor medida, foram referência nesse meu processo. Essas pessoas me influenciaram e me ajudaram a desenvolver essa perspectiva que considero fundamental para qualquer pessoa que se importe com a própria saúde e com a de quem a cerca.
Sempre lembrando que qualquer acerto desse texto pode e deve ter como crédito a contribuição de todas essas pessoas. Mas qualquer erro deve ser atribuído única e exclusivamente a mim.
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P.S. Esse texto reflete a opinião pessoal do autor e não necessariamente da escola Vertebra como um todo.