Cultura do Movimento, Corpo e Mente
A cultura do Movimento
Quando tive meus primeiros contatos com a cultura do movimento, através do professor Ido Portal, além de ser uma prática que me agradava do ponto de vista estético e lúdico, havia algo que me agradava de forma um pouco mais profunda. Que ia além da beleza dos movimentos. E hoje, depois de anos de prática, tenho um pouco mais claro o porquê disso.
Penso que a cultura do movimento representa, uma ruptura com a separação entre corpo e mente no campo dos saberes físicos, da saúde, ou do fitness. A cultura do movimento é parte de um processo onde, em diversos campos do saber humano, estamos derrubando o mito dualista e construindo pontes que entendem o ser humano a partir de uma perspectiva mais integrada.
Uma breve história do corpo e da mente
A ideia de que corpo e mente são instâncias que podem ser consideradas de forma isolada, está presente na cultura ocidental há milênios. Platão pode ser considerado o pai desta teoria dualista. Mas foi o cristianismo que solidificou definitivamente a ideia na nossa cultura. A noção de uma alma imortal que existe dentro de um corpo perecível, duas instâncias completamente separadas, vivendo em um mesmo lugar. Mas não paramos por aí. Depois do cristianismo perder o monopólio do saber no Ocidente, o Iluminismo, com todo seu racionalismo, também seguiu bebendo dessa fonte, reforçando-a ainda mais com a separação entre uma mente racional e ponderada de um lado e de um corpo desejante e irracional de outro.
Quem tem dificuldades em conceber uma comunhão ideológica entre o cristianismo medieval e o iluminismo moderno, basta olhar para a história da colonização. A colonização da África e das Américas, teve a religião católica e o racionalismo eurocêntrico como seus dois grandes sustentáculos ideológicos. A superioridade da religião cristã e a pretensão de salvar as almas dos “selvagens” reinou sobretudo nos séculos XVI, XVII e XVIII, enquanto a superioridade da raça e da razão europeias diante da irracionalidade dos outros povos foi predominante nos séculos XIX e XX. Discursos diferentes, lógica parecida.
O século XXI
Por mais que hoje esteja na moda dizer que corpo e mente são um só, boa parte da nossa visão de mundo e do funcionamento da nossa sociedade se baseia, em alguma medida, nessa concepção dual. O campo da saúde não foge a essa regra. O mundo fitness se baseia na ideia de que, para manter nosso corpo saudável, precisamos alimentá-lo, em ambientes que o estimulem, como academias e afins. Mas durante o processo de construção da saúde do corpo, em nenhum momento damos qualquer tipo de atenção à nossa mente. Nas academias temos televisões, levamos fones de ouvido, ou mesmo nosso celular, para tirar nossa mente dali enquanto nosso corpo trabalha.
Por outro lado, quando queremos resolver os problemas da mente, sentamos ou deitamos em um divã e, sem nenhum tipo de preocupação ou muito movimento do nosso corpo, falamos com um profissional sobre “as questões da mente”.
Por mais que achemos bonito dizer que corpo e mente são um só, será que nós entendemos muito bem as reais implicações dessa poderosa afirmação? Grande parte da nossa sociedade ainda está construída em cima de uma ideia diferente. A concepção dualista platônica.
O que a ciência tem a dizer sobre isso?
Há um campo do saber onde essa noção dualista já foi abandonada há bastante tempo. A neurociência e as ciências da evolução. Para a neurociência, a abordagem dualista não faz muito sentido, pois nosso sistema nervoso (que inclui obviamente nosso cérebro), evoluiu junto com nosso corpo com o objetivo de nos ajudar a fugir de ameaças (predadores) ou perseguir uma oportunidade (comida ou território). Nosso sistema nervoso tem a função de produzir ação.
Neurocientistas e cientistas evolutivos perceberam que o motivo pelo qual cérebros existem, em última instância, é para produzir movimento. Organismos sem cérebro não se movem. Organismos com cérebro se movem. Há inclusive um organismo marinho, com cérebro, que se move durante parte da sua vida, mas depois que ele encontra um lugar para viver, ele para de se mover. E a partir desse momento o que ele faz é comer seu próprio cérebro. Onde não há movimento, não há a necessidade de um sistema nervoso.
(Nessa palestra, o neurocientista Daniel Wolpert explica a ideia com mais clareza. https://www.ted.com/talks/daniel_wolpert_the_real_reason_for_brains?language=pt-br#t-90982 )
Os sinais que o corpo recebe e emite, regulam e modulam a forma como nosso sistema nervoso funciona. E os sinais recebidos e emitidos pelo nosso sistema nervoso, regulam e modulam as ações do nosso corpo. Biologicamente, somos uma cadeia ininterrupta de retroalimentação. Supor que existe corpo sem considerar uma mente ou uma mente sem considerar o corpo impossibilita a compreensão do nosso funcionamento.
Ainda no século XIX, o filósofo Nietzsche disse: “há algo que pensa em mim”. Sua filosofia enxergava a possibilidade de um corpo que pensa. Nietzsche atacou com veemência o dualismo platônico. A neurociência do século XXI concorda com o filósofo.
Quais são então essas consequências da crítica ao dualismo platônico?
As consequências são inúmeras e se espalham por todo campo do saber humano. Na economia, por exemplo, a teoria neoclássica dos agentes econômicos racionais e dos mercados eficientes, já está sendo há algum tempo posta em cheque pela economia comportamental e outras correntes que mostram que a aparente “irracionalidade” dos agente econômicos, quando eles não se comportam como nos modelos, nada mais é do que o corpo pensando.
Mas trazendo a discussão para o campo que nos interessa, que é movimento e saúde, uma abordagem que vise desenvolver um organismo vivo de forma harmônica e saudável, deve necessariamente, envolver práticas que lidam com ele de forma integrada. Corpo e mente. Corpomente. Organismo.
Esse é um dos motivos pelos quais a cultura do movimento é um paradigma tão poderoso. Pois na nossa prática, não há forma de engajar o corpo sem engajar a mente. O processo de aprendizado motor, de exploração das nossas capacidades físicas lida com o nosso organismo de maneira integrada. A aparente separação entre de um lado, força, equilíbrio, precisão ou agilidade, que em tese são propriedades do corpo, e de outro frustração, medo, vontade ou senso estético, que em teoria dizem respeito à mente, vai se desfazendo em uma prática profunda de movimento.
Por isso é tão difícil explicar o que fazemos quando praticamos movimento. Porque nossa cultura ainda separa em caixas distintas, fenômenos que, na realidade, são inseparáveis. Então nos faltam palavras para explicar com clareza. O que trabalhamos em uma aula de movimento? Força ou a capacidade de lidar com a frustração? Explosão e agilidade ou a capacidade de lidar com o medo? Leveza e fluidez ou nosso senso estético? Ou tudo junto ao mesmo tempo?