Cultivando um corpo disponível
Aquecer o corpo antes de realizar um trabalho tem diversas vantagens. Aumentar a temperatura corporal e estimular a circulação sanguínea são boas formas de minimizar o risco de lesões. Aquecer antes de um trabalho faz pleno sentido no ambiente de treino.
Porém, defenderei aqui que, como qualquer ferramenta, o aquecimento também tem seus custos. Como assim custos? Vamos lá. Na prática generalista de movimento, trazemos a atenção para os custos da especialização. De focar durante toda a vida em apenas um tipo de estímulo ou ferramenta. Por exemplo, Ido Portal diz: a argola é a melhor ferramenta para desenvolver força de membros superiores. Mas se você só trabalhar na argola, você pagará um preço. O que o professor está trazendo à tona é a questão, sempre recorrente, da importância da dosagem.
“Mas então você está me dizendo pra não aquecer? Isso não é arriscado?”. Sim. Pode ser arriscado. Mas antes de descartarmos a ideia, paremos para pensar. Qual foi o ambiente onde nosso corpo se desenvolveu? Nossos ancestrais não tinham academias e agendas de treino. Um predador não nos esperava aquecer para nos comer. Então, temos de concordar que não há nenhum sinal evolutivo que exija o aquecimento como precondição a qualquer tipo de esforço físico. Pelo contrário. Considerar nossa evolução nos mostra que seguramente somos adaptados de alguma forma a responder instantaneamente a necessidade de atividade intensa (fugir de um predador). Do contrário não estaríamos aqui.
E sobre o risco, não vejo o risco como algo bom ou ruim em si. O risco é também algo com que devemos lidar e aprender. Bem administrado, o risco tem muito a nos ensinar e nos faz crescer. Como diria o tio Ben, no homem aranha: “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades”. Autonomia e risco são fatores fundamentais de muito do que há de valor na vida.
Mas o que toda essa conversa sobre nossos ancestrais e risco tem a ver com nosso mundo atual? Explico. Eu gosto muito de cultivar a ideia que chamo de “corpo disponível”. Corpo disponível é o corpo que está pronto, potencialmente a qualquer momento, para executar uma tarefa que ele saiba ou precise fazer. E nesse sentido, se toda a minha prática de movimento precisou de um longo aquecimento para acontecer, dificilmente estarei cultivando a capacidade de ter um corpo disponível.
Ter um corpo disponível é uma sensação que vale a pena buscar. A ideia de presença do corpo, de estar pronto e disposto durante seu dia, e não apenas durante o momento do treino, é parte fundamental no processo de transformar um mero “treino” em uma prática de vida. De fazer com que os benefícios do seu treino transbordem para o seu dia a dia, trazendo as sensações de potência, disponibilidade e presença para além do momento do treino.
É claro que essa abordagem faz sentido até um certo nível de intensidade. Não recomendaria a ninguém fazer treinos de altíssima intensidade constantemente sem aquecimento. E é claro que eliminar abruptamente o aquecimento de um corpo sedentário, ou mesmo ativo mas acostumado com o aquecimento, pode trazer problemas. Mais uma vez a questão da dosagem é fundamental. Exposição gradual ao stress.
Por isso acho interessante a ideia de, com atenção e consciência, trabalhar, lentamente, a ideia de construir um corpo disponível. Um corpo que não precisa sempre de aquecimento para funcionar. Ter um corpo disponível é parte importante na minha prática.