Alimentação, evolução e comportamento
O que nós comemos tem efeito sobre o nosso comportamento? Certamente. Como espécie e como indivíduos. Alimentação e personalidade se retroalimentam em um loop contínuo de inter-relações. Quem você é influencia como você se alimenta. Como você se alimenta influencia quem você é.
Vou mostrar alguns aspectos dessa relação em diferentes escalas de análise, desde uma escala mais macro, evolutiva e populacional até a escala mais micro, neurológica. Pretendo com isso trazer uma visão mais ampla das relações entre alimentação e comportamento que não se prendem somente aos nutrientes, ou ao que está “dentro do prato”, mas que envolvem a forma de obtenção desses nutrientes também, que considero essencial para entender as diferenças na forma como evoluímos.
É importante portanto entender que, na natureza, animais que comem diferentes alimentos têm comportamentos inteiramente diferentes. E nós, antes de sermos humanos, somos animais. Ser um animal herbívoro ou carnívoro vai muito além de apenas uma “preferência alimentar”. A neurologia, o metabolismo e o comportamento de animais herbívoros ou carnívoros são inteiramente diferentes.
Então vamos definir primeiro, onde nós, homo sapiens sapiens, estamos dentro do grande espectro alimentar do reino animal. A espécie humana é uma espécie descendente de primatas. Nossos primos eram basicamente frugívoros, vegetarianos. Basicamente porque sim, nossos ancestrais primatas comiam carne sempre que podiam. Porém toda sua biologia foi moldada para viver no topo das árvores se alimentando de frutas e não tão adaptada para a caça. Enquanto essas frutas eram abundantes, havia pouco estímulo para eles se alimentarem de outra coisa. Mas mesmo assim há bastante variação entre populações de diferentes lugares e é sabido que, sempre que possível, apesar de ser exceção na rotina da maioria dos primatas, a carne era a fonte preferida de alimentação.
Há alguns milhões de anos, esses primatas foram obrigados a descer das árvores por conta de mudanças climáticas que transformaram florestas em savanas, e que, nesse processo aprenderam a caçar e introduziram mais carne nas suas dietas. E essa mudança de comportamento alimentar, traz mudanças significativas para a nossa evolução.
Dito isso, onde nós nos encontramos nesse espectro herbivorismo/carnivorismo? Como espécie estamos entre esses dois polos. E individualmente, podemos estar mais para um lado ou mais para outro. Diferentes populações humanas, pelas condições específicas do ambiente onde viveram e buscaram prosperar, acabaram se adaptando melhor a dietas mais ou menos carnívoras, mais ou menos vegetarianas.
Um dos muitos motivos do sucesso evolutivo da nossa espécie é justamente a nossa versatilidade. Versatilidade de movimento, versatilidade alimentar, versatilidade cognitiva. Essa versatilidade nos levou a migrar para diferentes climas e prosperar em diferentes ambientes. Portanto, diferentes tribos caçadoras coletoras, em diferentes lugares do mundo, se alimentavam em proporções diferentes de alimentos de origem vegetal ou animal. Como espécie estamos em algum lugar no meio desses dois polos, sendo onívoros flexíveis que, individualmente, podemos variar em alguma medida entre esses dois extremos. Porém, convém frisar que, enquanto há relatos de populações como os inuites, que sobreviviam apenas de alimentos de origem animal, não há registro de populações caçadoras coletoras que prosperaram sendo inteiramente vegetarianas.
Sabendo disso, fica mais fácil entender os efeitos dessa transição alimentar da nossa espécie, de primatas vegetarianos para humanos onívoros. Comecemos pelo comportamento.
O metabolismo e comportamento herbívoro e carnívoro
O metabolismo, a digestão e o comportamento de animais herbívoros e carnívoros é consideravelmente diferente. Um animal carnívoro trabalha com a ideia da intermitência da nutrição. Mesmo um predador do topo da cadeia alimentar como o leão, quando sozinho, fracassa em 80% das suas investidas de caça. Em grupo essa taxa cai um pouco. Portanto um animal carnívoro, às vezes é obrigado a ficar dias sem comer. Mas quando consegue uma caça bem sucedida, se delicia com um banquete repleto de nutrientes altamente disponíveis e pode ficar por mais muito tempo sem se alimentar de novo.
Já um animal herbívoro, lida com alimentos que não podem sair correndo. As plantas estão sempre aí. Mas elas têm outras formas de defesa como toxinas, por exemplo. Por isso a esmagadora maioria das plantas da natureza não é comestível para nós. E são alimentos muito menos densos nutricionalmente. As plantas que têm algum valor nutritivo para eles são repletas de fibras, o que torna a digestão lenta e a absorção de nutrientes difícil. Por isso animais vegetarianos passam boa parte do seu tempo acordado comendo. É um trabalho muito mais constante de, a todo tempo, comer um pouco. O aparelho digestivo desses animais consome muita energia, tendo que romper as fibras para extrair valor nutritivo desses alimentos.
Portanto, o comportamento de um herbívoro é muito mais estável, monótono, do que o de um carnívoro, que trabalha com a intermitência constante entre fome e fartura. Um comportamento tipicamente carnívoro é, quando um alimento aparece na sua frente, comer o máximo possível. O herbívoro já não precisa se apressar. A comida seguirá lá por algum tempo.
O hábito alimentar vegetariano, portanto, se posto em um gráfico e comparado com o de um carnívoro, seria muito mais uma linha quase reta no meio de um estado de alimentação e não alimentação, de atividade e não atividade, enquanto o do carnívoro seria um conjunto de picos curtos de super alimentação e super atividade, seguidos de períodos longos de nenhuma alimentação e pouca atividade. Enquanto a atividade metabólica do vegetariano é constante e baixa, a do carnívoro é intermitente e extrema.
Essas diferenças metabólicas, têm efeitos comportamentais muito claros. Animais carnívoros transitam entre períodos de extrema atividade e longos repousos. Animais vegetarianos estão constantemente em um período de baixa atividade.
Os efeitos da introdução da carne na dieta humana
O cérebro humano, dopamina, tirosina e a carne
Tratando da questão neurológica e trazendo a questão mais especificamente para os efeitos da introdução da carne na dieta humana, Fred H. Previc, renomado neurocientista da Universidade de Texas, em seu artigo Dopamina e as origens da inteligência humana , defende o papel fundamental do desenvolvimento de circuitos neurais dopamínicos para o desenvolvimento da inteligência humana. A dopamina é um neuromodulador conhecido como a molécula da motivação. Porque o que a dopamina faz no nosso cérebro é motivar o nosso sistema a buscar coisas que não temos. Ela nos direciona para fora de nós mesmos.
Para buscar algo que não tenho, é fundamental, não apenas ser dotado de capacidades físicas, mas sobretudo de capacidades cognitivas. Por isso esses circuitos de dopamina estão ligados a habilidades neurais críticas da inteligência humana como planejamento motor, flexibilidade cognitiva, raciocínio abstrato, processamento temporal e generatividade.
Segundo Previc e outros cientistas evolutivos, o desenvolvimento dos caminhos dopaminérgicos no nosso cérebro está diretamente ligado ao ambiente da caça.Imagine um primata acostumado a, facilmente coletar frutas do topo das árvores, que é pouco tempo, do ponto de vista evolutivo, é jogado em uma savana aberta, onde não há muitas frutas para colher, não há muitas árvores para subir e se proteger de predadores e onde não existe muito onde se esconder em uma savana de vegetação rala.
Esse primata não corre tem as garras de um leão, não é forte como nenhum urso, não é rápido como uma gazela e, portanto, só não foi extinto por algumas adaptações fundamentais. A primeira delas é, claramente, aprender a andar e correr em duas patas. Essa adaptação, junto com a diminuição da pelagem do corpo, permitiu que nós humanos tivéssemos uma capacidade de regular a temperatura melhor do que de todos os outros mamíferos. Ficar de pé diminuiu a área de contato do nosso corpo com o sol. E não ter pelos facilitou a perda de calor, aliada ao mecanismo de resfriamento do corpo através do suor.
Essas adaptações permitiram o surgimento da principal forma de caça humana que é a conhecida “caça de persistência”. A caça de persistência consistia em correr atrás de um animal durante horas, até que o animal literalmente sucumbisse ao cansaço pelo aumento da temperatura corporal. A capacidade superior de termorregulação humana era chave nessa caça.
A caça, em si, já demanda de um animal um funcionamento cerebral distinto da coleta. Como já vimos, vegetais e frutas não se movem, ou pelo menos não em velocidade significativa para a vida de um animal. Portanto, a demanda cognitiva necessária para caçar é consideravelmente maior do que para coletar. É necessário ter uma capacidade de mapeamento mental do território, assim como uma compreensão do comportamento das presas, para saber caçá-las, de forma muito mais complexa do que apenas entender a localização de frutas ou vegetais imóveis.
A caça de persistência, especificamente, demanda um nível ainda maior de perspicácia para encontrar um animal e rastrear suas pegadas e vestígios durante horas a fio. Além disso, o nível de motivação e foco que um animal precisa ter para realizar essa caça, é muito maior do que qualquer atividade de coleta de frutas ou vegetais. Lembremos que a dopamina é o neurotransmissor da motivação. E que está diretamente ligado à capacidade de previsão, planejamento. E diferente dos solitários predadores carnívoros, os frágeis humanos, tinham sempre que andar em grupos para não se tornar, eles mesmos, presa.
A caça de persistência envolve, portanto, do ponto de vista cognitivo, interações sociais mais complexas, boa comunicação, capacidades finas de análise temporal e muito planejamento e abstração para se manter motivado a seguir em movimento por horas, mesmo sem nenhuma recompensa imediata. O ambiente da caça de persistência moldou, em grande medida, o cérebro humano. Ele transformou significativamente o cérebro de primatas que, até então, simplesmente passavam horas comendo pequenas frutas e plantas disponíveis, sem precisar de grandes motivações ou capacidades cognitivas.
Além disso, um nutriente presente na carne, chamado tirosina, é um dos precursores da dopamina, ou seja, uma de suas matérias primas. Então o ambiente da caça de persistência, aliada ao aumento de acesso a tirosina entre os primeiros hominídeos, pode ter gerado um feedback positivo no sentido do desenvolvimento ainda maior desses caminhos dopaminérgicos. Outros nutrientes como B2, cálcio ou ômega 3, bastante presentes em alimentos de origem animal, também são importantes para a produção de serotonina, um neurotransmissor ligado a estados de contentamento.
A hipótese do tecido custoso
Ainda sobre os efeitos da introdução da carne na dieta humana, a paleoantropóloga Leslie Aiello, cunhou a hipótese do tecido custoso, onde também podemos argumentar que a introdução da carne na dieta humana, contribuiu positivamente para o desenvolvimento cognitivo da nossa espécie. Pois os dois órgãos que mais custam energia do nosso corpo são o intestino e o cérebro. E animais herbívoros precisam ter intestinos muito longos para digerir toda a fibra da sua alimentação. Nós humanos temos intestinos menores que nossos ancestrais primatas herbívoros. Uma adaptação clara advinda da mudança na nossa dieta.
E segundo Leslie Aiello, a “sobra” de energia gerada pela introdução da carne e pela diminuição da necessidade de ter um intestino tão longo, tornou possível que o nosso cérebro se desenvolvesse. Juntando uma sobra de energia intestinal por não precisarmos mais digerir tanta fibra, com uma pressão evolutiva no sentido de maior demanda cognitiva da caça de persistência, temos um cenário onde o cérebro humano começa a se desenvolver. O gráfico é claro. O cérebro humano começa a crescer consideravelmente 2 milhões de anos atrás. Quando aprendemos a cozinhar alimentos, e aí de fato passamos a ter uma disponibilidade energética inédita na história da nossa espécie, a curva sobe ainda mais vertiginosamente

Alimentação carnívora e testosterona
A relação entre o consumo de uma dieta rica em proteína e gordura animal e o aumento dos níveis de testosterona é sabida e registrada em diversos estudos até mesmo no campo da ontogenia (tempo de vida de um indivíduo). Segundo o neurologista Robert Sapolsky, apesar da testosterona ser associada primariamente a drive sexual e agressividade, esse hormônio tem um efeito muito mais genérico de basicamente nos tornar mais confiantes em nós mesmos. Esse excesso de confiança claramente pode levar desde atos heróicos como salvar um bebê em um prédio em chamas até atos desprezíveis como agredir pessoas indefesas. Apesar de toda a politização que existe em torno da testosterona, hormônios não “causam” comportamentos específicos. Eles apenas alteram nosso estado em uma direção, mas qualquer comportamento é o resultado da interação de tudo que existe no nosso sistema. A testosterona, assim como toda a natureza, não tem moral. A moral é uma invenção humana. Portanto a testosterona pode levar um ser humano a todo tipo de ato dos mais altos aos mais baixos moralmente.
Se juntarmos dopamina, l-tisorina, testosterona, e seus hormônios interligados, o cortisol e a adrenalina, que são responsáveis por excitar o sistema, por nos levar a um estado de ativação, podemos começar a vislumbrar uma tendência global de comportamento.
Conclusão
Antes de tirarmos qualquer conclusão simplória, reducionista ou caricatural, convém deixar bem claro aqui que estamos falando de tendências. Por mais que acredite que sim, existe, quando considerados em nível genérico, macro, uma tendência de comportamento entre seres humanos que preferem um tipo de alimentação a outro tipo de alimentação, em nenhum momento suponho ser possível traçar uma relação linear de causa e consequência. Em sistemas complexos não é assim que funciona. Variabilidade é a norma dos sistemas complexos. É a regra como a evolução opera.
Então uma tendência geral de comportamento sempre terá inúmeras exceções quando olhada mais de perto. Mas isso não tira, de forma alguma o poder dessas heurísticas. Dessa identificação de tendências. Pois se formos entrar em uma discussão mais profunda sobre a possibilidade de conhecer a realidade, veremos que só podemos trabalhar com heurísticas. Não somos capazes de produzir previsões rigorosas sobre sistemas complexos justamente pela sua propriedade fractal, onde a variação está na forma como o sistema se organiza.
Então é importante reiterar que, sempre que falamos de seres humanos, que são sistemas complexos, estamos considerando que haverá variabilidade. Somos altamente flexíveis na nossa biologia, a variação individual, decorrente da interação de milhares de outros fatores é praticamente infinita.
Dito isso, podemos seguir com a conclusão. E ela é. Existe uma tendência a uma maior linearidade de comportamento entre herbívoros. E existe uma tendência à intermitência de comportamento entre carnívoros. Animais herbívoros podem ser tidos como mais calmos, mais tranquilos, menos dispostos, menos “vitais” do que carnívoros, mais agitados, mais impulsivos, mais dispostos, mais viris.
Tentei ser o mais neutro com as palavras possível, escolhendo duas palavras “positivas” e “negativas” como “tendências” de cada comportamento. Mas sei que as palavras não são neutras. Muito menos você que está lendo esse texto e tem suas próprias opiniões sobre isso. Mas é o máximo que posso fazer. Não é à toa que existe uma clara correlação - não uma causalidade - entre vegetarianismo e depressão. E também é claro que existe uma correlação entre altos níveis de testosterona e comportamento agressivo. E estou simplificando aqui quando falo apenas da testosterona, pois os hormônios sexuais femininos como estrogênio e progesterona também são responsáveis por comportamentos agressivos em diferentes contextos. Mas minha intenção é mostrar tentar traçar um quadro geral e não entrar nas especificidades das relações entre hormônios e comportamento.
Portanto, mais do que escolher um time, uma bandeira ideológica e defendê-la a todo custos, penso que é importante percebermos que, na natureza, quase nada que existe vai nos trazer só vantagens, ou só desvantagens. Nenhum traço de personalidade é absolutamente benéfico ou maléfico. O que não quer dizer que tudo se equivalha. Diferentes indivíduos vão tirar mais ou menos vantagens de diferentes estratégias, diferentes comportamentos. E convém entendermos essas tendências gerais para podermos guiar melhor nossos atos em vida, talvez entender o porquê de algumas coisas.
Por isso considero importante saber que existe sim uma relação mais profunda, entre o que comemos e quem somos. E apesar das nossas ideologias e crenças desempenharem um papel importante na nossa biologia e saúde, elas não são capazes de transformar a realidade metabólica do nosso sistema - ou talvez só em casos muito extremos, afinal estamos lidando com sistemas complexos. Por isso é importante sabermos que apesar de termos um metabolismo plástico e moldável, é possível que tenhamos certas necessidades nutricionais que vão no sentido contrário das nossas crenças. Então, por mais que uma pessoa seja uma ferrenha ativista do vegetarianismo, nem sempre sua natureza biológica vai concordar com isso. E essa pessoa pode se sentir fraca, sem disposição, deprimida, sofrer com alergias, doenças…sem perceber que a sua alimentação pode ser um fator decisivo nesse quesito.
E não acredito que o oposto possa ser dito. Na minha opinião, raras são as pessoas que vão piorar sua saúde se alimentando de proteína animal de qualidade. Pois, como vimos, ela tem um papel importante na constituição da nossa espécie. Mas claro, sempre haverá exceções. Por um lado, penso que dificilmente alguém terá sua saúde prejudicada ao comer carne, pelo contrário. Mas por outro acredito que há um número considerável de pessoas que podem viver bem sem comê-la. Não é a maioria. Mas sim, não me parece tão raro assim, visto que descendemos de primatas herbívoros, de modo geral.
E o que fazer com tudo isso? O que você quiser. Não é minha intenção tentar convencer ninguém de adotar nenhum comportamento específico. Acredito, no entanto, na importância de termos uma compreensão sobre como funcionamos para poder tomar escolhas mais informadas sobre nossa alimentação, saúde e comportamento em geral.